No prédio da famosa Loja de Departamentos Harrods, em
Londres, há uma inscrição que diz omnin
omnibus ubique, tudo para todos em
toda parte.
O apelo comercial da frase tem ares bem monárquicos,
mas adultera o que de fato poderia ser. Bem sabemos que naquele lugar, ou em
qualquer outro, as coisas não são assim. Aliás, por falar nisso, a maior parte
de nosso achatado (alguns preferem chato) planeta é um não-lugar.
A dita inscrição me fez lembrar um cara singular,
Francis Bacon, pintor. Digo pintor porque há outro cara com o mesmo nome, um
dos pioneiros da ciência moderna.
Bacon, antes de ver pinturas de Picasso, jamais pensou
que poderia fazer o mesmo. O impacto foi tão grande que resolveu pintar, mas
decepcionando-se com o resultado.
Mais tarde ele constatou que a decepção sobreveio
porque tudo foi provocado por uma experiência estética, e não através de algo
mais visceral – de sua subjetividade. Isso aconteceu quando dava uma banda na
tal Harrods, que em seu tudo, exagera
no que se engole mastigado ou não.
Ao aproximar-se de um açougue, Bacon foi arrebatado
pelas carnes expostas. Ali então ele teve completamente o que o levou a pintar
sem parar mais, e sem saber por que certas coisas têm essa força incontrolável
que passa (isso ele sabia) pelo instinto ou pela intuição.
Bacon uma vez declarou que se surpreendia por “não
estar ali, no lugar dos nacos de carne”. Nestas alturas ele já havia encontrado
uma frase de Ésquilo, que adaptou:
O cheiro de
sangue humano não desgruda seus olhos de mim.
A isso Bacon chamou de “disparador”, isto é, o que
motiva se realizar a pintura, nesse caso com cheiro de sangue, conforme suas
palavras “a carne do homem como se ela se espalhasse para fora do corpo, como
se ela fosse sua própria sombra”.
Esta e outras conclusões de Bacon coincidem com as de
seu homônimo, o filósofo Francis Bacon, que escreveu o tratado Sobre os meios de morrer, adiar a velhice e
restaurar as forças vitais, obra que o pintor não conhecia, pois o manuscrito
foi descoberto na Inglaterra e publicado em francês em 1984.
Nas conversas de Frank Maubert com Bacon pintor, ele
afirmou que o texto de observação e descrição científicas “veio fortuitamente
esclarecer e pôr em correspondência o trabalho do pintor com o do pensador, seu
grande ancestral”. O parentesco entre as observações empíricas de Bacon
cientista e as expressões de Bacon pintor sobre a morte não se limita a um ou
outro caso.
O Bacon cientista constatou que alguns corpos evolam.
Corpos que se tornam ocos, ressonantes, ásperos, emaranhados, nos quais se vê a
migração com a atenuação e a fuga da matéria. Nos corpos mais flexíveis,
compactos e porosos, a migração tem o nome mais provável do que supostamente
ocorre depois da vida: “o espírito não encontra passagem e meios pelos quais
evolar-se secretamente, mas impele claramente para diante de si as partes
espessas que ele estendeu e modelou, e as impele com violência para a
superfície do corpo”.
Dos experimentos empíricos de Bacon, esse é o que mais
situa a pintura de Bacon que, enfim, merece outra inscrição, a que se lê na
entrada da Capela dos Ossos, em Évora, Portugal: “Nos ossos que aqui estamos
pelos vossos esperamos”.