segunda-feira, 21 de outubro de 2013

PINTURA COM CHEIRO DE SANGUE

Por Jayro Schmidt





No prédio da famosa Loja de Departamentos Harrods, em Londres, há uma inscrição que diz omnin omnibus ubique, tudo para todos em toda parte.
O apelo comercial da frase tem ares bem monárquicos, mas adultera o que de fato poderia ser. Bem sabemos que naquele lugar, ou em qualquer outro, as coisas não são assim. Aliás, por falar nisso, a maior parte de nosso achatado (alguns preferem chato) planeta é um não-lugar.
A dita inscrição me fez lembrar um cara singular, Francis Bacon, pintor. Digo pintor porque há outro cara com o mesmo nome, um dos pioneiros da ciência moderna.
Bacon, antes de ver pinturas de Picasso, jamais pensou que poderia fazer o mesmo. O impacto foi tão grande que resolveu pintar, mas decepcionando-se com o resultado.
Mais tarde ele constatou que a decepção sobreveio porque tudo foi provocado por uma experiência estética, e não através de algo mais visceral – de sua subjetividade. Isso aconteceu quando dava uma banda na tal Harrods, que em seu tudo, exagera no que se engole mastigado ou não.
Ao aproximar-se de um açougue, Bacon foi arrebatado pelas carnes expostas. Ali então ele teve completamente o que o levou a pintar sem parar mais, e sem saber por que certas coisas têm essa força incontrolável que passa (isso ele sabia) pelo instinto ou pela intuição.
Bacon uma vez declarou que se surpreendia por “não estar ali, no lugar dos nacos de carne”. Nestas alturas ele já havia encontrado uma frase de Ésquilo, que adaptou:

O cheiro de sangue humano não desgruda seus olhos de mim.

A isso Bacon chamou de “disparador”, isto é, o que motiva se realizar a pintura, nesse caso com cheiro de sangue, conforme suas palavras “a carne do homem como se ela se espalhasse para fora do corpo, como se ela fosse sua própria sombra”.


Esta e outras conclusões de Bacon coincidem com as de seu homônimo, o filósofo Francis Bacon, que escreveu o tratado Sobre os meios de morrer, adiar a velhice e restaurar as forças vitais, obra que o pintor não conhecia, pois o manuscrito foi descoberto na Inglaterra e publicado em francês em 1984.
Nas conversas de Frank Maubert com Bacon pintor, ele afirmou que o texto de observação e descrição científicas “veio fortuitamente esclarecer e pôr em correspondência o trabalho do pintor com o do pensador, seu grande ancestral”. O parentesco entre as observações empíricas de Bacon cientista e as expressões de Bacon pintor sobre a morte não se limita a um ou outro caso.
O Bacon cientista constatou que alguns corpos evolam. Corpos que se tornam ocos, ressonantes, ásperos, emaranhados, nos quais se vê a migração com a atenuação e a fuga da matéria. Nos corpos mais flexíveis, compactos e porosos, a migração tem o nome mais provável do que supostamente ocorre depois da vida: “o espírito não encontra passagem e meios pelos quais evolar-se secretamente, mas impele claramente para diante de si as partes espessas que ele estendeu e modelou, e as impele com violência para a superfície do corpo”.
Dos experimentos empíricos de Bacon, esse é o que mais situa a pintura de Bacon que, enfim, merece outra inscrição, a que se lê na entrada da Capela dos Ossos, em Évora, Portugal: “Nos ossos que aqui estamos pelos vossos esperamos”.



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