O tópico morte de Van Gogh, na biografia escrita por
Steven Naifeh e Gregory White Smith, uma vez abordado exige detalhes semióticos
de Dupin, os quais delimito com uma observação panorâmica: A nova versão da
morte de Van Gogh, ao desautorizar a primeira versão, a do suicídio, acaba
rendendo-se ao que dela refuta, ou seja, as suposições que são inevitáveis
quando as provas cabais se esgotam. Nesse aspecto, as versões têm o mesmo peso
que aceitamos ou não.
Segundo os biógrafos, a versão do suicídio não se
sustenta e, como sabemos, serviu para alavancar a fama do holandês, aliás,
versão de acordo com os episódios dramáticos de sua vida. Não se sustenta por não
ter surgido nenhuma testemunha na época, a não ser o próprio Van Gogh, acrescentado-se
que os apetrechos de pintura desapareceram, assim como a arma que podia
pertencer ao hospedeiro Ravoux, em Auvers, que teria emprestado ao pintor ou
vendido a René Secrétan, na época um rapaz com 16 anos, que com o pé na cova,
aos 82 anos, tornou público o que sabia, incluindo o mais decisivo, que dele a
arma foi roubada por Van Gogh.
O que disse Van Gogh, assim que foi perguntado pela
polícia, que quis se matar e que ninguém era culpado, os biógrafos duvidaram da
veracidade e, inclusive, interpretaram como se ele estivesse ocultando alguma
coisa, ou seja: havia um culpado, quando, desde Arles, Van Gogh se sentia
ameaçado e chegou a ameaçar algumas pessoas, sobretudo os rapazes que o
chamavam de louco e atirando pedras. Em Arles, mais de cem assinaturas foram
enviadas ao delegado numa petição, prender Van Gogh, o que aconteceu.
Por outro lado, Secrétan foi visto como a primeira
fonte confiável, quando logo se constata que foi conveniente para os biógrafos.
Para tanto, frisaram bem que ele estudou numa escola onde estudaram Verlaine,
Proust e onde lecionaram Mallarmé e Sartre – como se isso assegurasse a
respeitabilidade de todos que lá estudaram.
Sabe-se que Secrétan rapaz foi carente de atenção que resolvia
com expedientes estimulados pelo álcool. Isso continuou dando sinais em sua
vida de adulto, e quando Van Gogh começou a ficar famoso, vários testemunhos
dizem o mesmo: Secrétan era um fanfarrão e várias vezes gabola dizia que foi
amigo de Van Gogh e que dele a arma fora roubada. No entanto, a nota específica
sobre a morte de Van Gogh, na biografia, nada diz sobre o caráter duvidoso e
pernicioso de Secrétan, e prossegue.
Secrétan rapaz vivia pentelhando Van Gogh, que
respondia furioso, ainda que com ele tenha esvaziado algumas garrafas, fator
indispensável para o que os biógrafos vão concluir como “indícios disponíveis” com
o testemunho tardio, mais de noventa anos depois da morte de Van Gogh, de
Madame Liberge durante a década de 1960. Seu depoimento está no trecho que
transcrevo para que não fiquem dúvidas acerca de suas contradições:
Madame
Liberge descartou a versão tradicional de que Vincent recebera o ferimento
mortal nos trigais adiante do cemitério de Auvers. Contou a Tralbault:
Não sei por
que as pessoas não contam a verdadeira história. Não foi lá, perto do
cemitério... [Van Gogh] saiu da Estalagem Ravoux na direção da vila Chaponval.
Na Rue Boucher, ele entrou num pequeno terreiro. Lá ele se escondeu atrás da
esterqueira. Então cometeu o ato que levou à sua morte poucas horas depois.
Não se sabe, no depoimento de Madame Liberge,
como seu pai pode dizer que Van Gogh entrou naquele local. O trecho continua
com justificativas acerca de sua respeitabilidade, que transmitiu à filha exatamente
o que confiou a Tralbault, questionando porque informação tão importante
somente veio à tona somente em 1960. E os biógrafos acrescentam:
Alguns
anos depois, outra moradora de Auvers, chamada Madame Baize, confirmou a
história de Madame Liberge ao contar a outro entrevistador que seu avô “viu
Vincent sair da Estalagem Ravoux naquele dia e seguir na direção da vila de
Chaponval”. A mesma testemunha disse ter visto Van Gogh entrar num pequeno
terreiro da Rue Bolcher e então ouviu um disparo. Depois de esperar algum
tempo, “ele entrou pessoalmente no terreiro”, segundo o relato de Madame Baize,
“mas não havia ninguém à vista. Nenhuma arma, nenhum sangue, apenas um monte de
esterco”.
É hora de ir por partes, cujos próprios detalhes se
encarregam de anular o que os biógrafos disseram:
1.
O relatado pelo avô de Madame Baize repete o do pai de Madame Liberge: ambos
viram Van Gogh sair da hospedaria e entrar no terreiro que fica por volta de um
quilômetro e meio de onde saiu, coisa que seria impossível.
2)
Esta é a primeira grande contradição da biografia, que passou batida, pois os
biógrafos fizeram do relato de Madame Baize, acrescido ao de Madame Liberge, o alicerce
do que pretenderam demonstrar juntamente com as suposições de Secrétan.
3)
E assim os biógrafos deram continuidade a depoimentos insustentáveis com a
afirmação de que o avô de Madame Baize não viu o vitimado caído no tal terreiro
e que, em vez de suicídio, o cenário foi o da ação de um agressor, Sécretan,
que teria escapado e ocultado a arma e os pertences do agredido.
4)
Conclui-se que o que foi transmitido por Madame Liberge e por Madame Baize não
tem nenhuma credibilidade. Porém, os biógrafos não observaram essas evidências
enganosas, ou não quiseram apesar de estarem cientes de algo que foi totalmente
comprovado pela polícia e os médicos: com o aspecto do ferimento concluíram que
o disparo ocorreu na primeira hora da tarde, e Van Gogh retornou do local
quando anoiteceu, portanto mais de cinco horas depois. Se o avô de Madame Baize
tivesse entrado no terreiro, por que nada viu no local, somente o monte de
esterco? E assim, uma suposição maior precisa ter outras suposições adjacentes
senão o edifício hipotético desmoronaria antes do tempo. Nisso os biógrafos
foram habilidosos ao intermediarem o que ficou provado e o que jamais será
provado:
a)
Segundo eles seria mais fácil Van Gogh ter sido visto retornando dos trigais,
cujo acesso era bastante habitado e com pessoas nas varandas das casas por se
tratar de um domingo com temperatura amena, o que não aconteceu. No caminho da
vila de Chaponval, pelo contrário, não foi visto em função do lugar despovoado,
cujas mínimas habitações o anoitecer convidava trancar portas e janelas.
b)
Por outro lado, o exame policial e médico da perfuração da bala, entre o
estômago e o peito, além de revelar que foi disparada por uma arma leve, como a
de Ravoux, não foi a queima roupa e de pouca distância, porém sem que tenham
dito qual, daí, segundo os biógrafos, a possibilidade do disparo acidental na
escaramuça que Van Gogh teria se envolvido com quem vinha tendo contrariedades,
Secrétan, que, segundo a suposição absurda e sem prova, estava no local do
disparo, o terreiro adentrado pelo pintor.
c)
Secrétan lá esteve, conforme a descrição de Steven e Gregory, por ser um local
perto do pesqueiro de sua preferência e por não largar o pé de Van Gogh. E
Secrétan não deixava de portar a arma de Ravoux, que logo tirou o seu da reta
dizendo que havia, como já foi mencionado, emprestado a Van Gogh para espantar
os corvos que o importunavam nos trigais. Desta forma, Ravoux esquivou-se de
maiores envolvimentos na questão, sendo suicídio ou acidente.
Tais argumentos parecem validar a versão do acidente,
enquanto a do suicídio exigiria, segundo os biógrafos, uma familiaridade de Van
Gogh com as armas, o que ele não tinha, somente com venenos. Assim, o pintor
não poderia ter se suicidado desta maneira, ainda mais com um disparo numa
parte do corpo, a do estômago, a parte que as estatísticas registram como a
menos utilizada por quem quer chegar a tanto. E Van Gogh não deixou nenhum
bilhete! Como se todos os suicidas fizessem isso, como se todos eles visassem a
cabeça, e como se não fosse possível a quem desconhece armas empregá-las se
necessário.
Desnecessário é continuar argumentando sobre isso,
sobretudo por se saber da literatura legista que as pistas deixadas pelo
suicida ou pelo homicida são reconhecidas posteriormente, umas facilmente,
outras nem tanto, e ainda outras jamais vislumbradas. É claro que todos os
sinais deixados são examinados em nome da veracidade à medida que são
descartadas as inveracidades.
Não foi o que aconteceu com os biógrafos, com a
ressalva de que não agiram de má-fé, embora tenham sido sensacionalistas por
meio de algo que se tornou frágil assim que as provas se esgotaram, acumulando
fantasias na mesma proporção da versão do suicídio.
Como já foi dito, o mais legítimo para a versão do
acidental – e que serve também para a versão do suicídio –, foi o aspecto do
ferimento que revelou o ângulo oblíquo e a pequena distância da arma na hora do
disparo. Mesmo assim, com o disparo à curta distância, que favorece o uso da
arma por outra pessoa ou com duas envolvidas em luta, não se descarta a
possibilidade do próprio Van Gogh ter desferido o tiro de uma distância
compatível com o tamanho de seu braço, que não era pequeno, o que dá uma
distância suficiente e oblíqua ao se manter uma arma contra o próprio corpo. A
única forma de mudar essa posição, tornando-a perpendicular ao corpo, seria
empunhar a coronha com uma das mãos, dispondo da outra e do dedão para acionar
o gatilho. Mesmo assim, no momento em que começa o impacto dentro da arma, o
cano pode desviar-se da posição inicial se a arma não estiver bem empunhada.
Algo parecido ocorre com frequência nas tentativas de suicídio uma vez a arma fixada
contra a cabeça, que pode com o impacto resvalar.
Reafirma-se aqui o que a polícia e os médicos
atestaram: a arma esteve posicionada numa diagonal em relação ao perfurado. Quanto
ao local do acontecimento, e sem levar em conta as contradições de testemunhos
e tudo o que tem de vago nas hipóteses, é bem provável que o cenário do tiro
tenha sido o do terreiro, porém tiro proposital, suicida, e o próprio Van Gogh
se desfazendo dos apetrechos e da arma.
Não sei se vale a pena mencionar que os biógrafos,
sobre isso, cometeram o maior disparate: se Van Gogh queria se matar, não teria
saído da hospedagem com tantas coisas, e ao ver que o tiro dado não foi o
suficiente, teria dado outro. Bem se vê que eles desconsideraram o tempo entre
o disparo e a hora em que Van Gogh recobrou a consciência, além de nada saberem
sobre o efeito instantâneo que um ato frustrado provoca, totalmente contrário ao
que se pretende, sobretudo nas tentativas de suicídio. Isso sem considerar que
o disparo no caso de Van Gogh, por ter a bala se alojado perto da coluna
vertebral, de forma alguma poderia deixá-lo desperto ou semi-desperto. Tanto é
que retornou do local bem mais tarde com o corpo curvado por estar sentindo
muita dor. Se o disparo tivesse atingido algum órgão, cuja constatação não
exige conhecimentos médicos, a perda de sangue seria tanta que impossibilitaria
qualquer movimento e ele não poderia sair do terreiro a não ser com a ajuda de
alguém.
Nisso os biógrafos foram às raias da ignorância, pois
se desconhece casos assim no histórico dos suicídios. O que se conhece é que tentativas
frustradas são corrigidas em outra oportunidade. Ou o contrário: desistências
após a primeira, como também de outras tentativas. E quem não sabe que a
impotência diante de problemas existenciais provoca a potencialização do
suicídio? Se essa potencialização não chega ao efeito de sua causa, retorna com
redobrada força a covardia dos suicidas.
Isso vale de relativa maneira para os homicidas, o que
também girou na mente de Van Gogh no desfecho com Gauguin, que segundo o
próprio foi perseguido por ele e alcançado na praça Lamartine, em Arles, com a navalha.
Por estas, e por outras atitudes de Van Gogh, não restam dúvidas que poderia
matar alguém ou se matar numa altura de sua vida em que foi alvo de desconfianças
e chacotas as mais humilhantes.
Depois dessas considerações, nada melhor do que pensar
sobre a problemática mesma de Van Gogh com antecedentes bem marcados em direção
de uma solução definitiva de seu existir.
Depois do episódio da orelha cortada, em cartas ao
irmão Theo fica claro que Van Gogh conscientizou-se de sua condição perigosa
para ele mesmo e para os demais. Admitiu-se como louco e chegou a dizer que
seria a sua “profissão”, preferindo, em consequência, internar-se por conta
própria, o que aconteceu depois do inevitável internamento em Arles, indo para
o hospício Saint-Paul de Mausole, em Saint-Rémy, um mosteiro medieval que em
parte concordava com o que escrevera de Arles a Theo, referindo-se à sua “dupla
personalidade, uma de monge e outra de pintor”. Entretanto, em outra carta a
uma de suas irmãs, Van Gogh voltou a frisar que não queria “ter uma vida de mártir”,
que procurava “sempre outra coisa que não fosse o heroísmo” apesar de admirar
em outros, enfatizando que esse não era seu “dever”, nem seu “ideal”.
Citei esta passagem para poder fundamentar o fato dos
biógrafos terem afirmado que o disparo, que para eles foi acidental e
envolvendo outra pessoa ou mais, foi providencial para quem precisava da morte,
mas sem coragem de perpetrá-la, então saindo da vida como “mártir”. Isso foi
baseado nas refutações dessa forma vergonhosa e recriminada de morrer por Van
Gogh, todas estampadas em cartas. Outra vez os biógrafos caíram no questionável
ao privilegiarem determinadas convicções de Van Gogh em detrimento de outras
não menos importantes, exemplificadas acima.
No hospício de Saint-Rémy, prosseguindo as reações
psíquicas autopunitivas de Van Gogh nos desastres passionais, da mão queimada
ao corte da orelha, outra vez ele perdeu o prumo emocional que redundou no
engolir a tinta, o material oleoso da pintura, um suicídio simbólico, engolir a
pintura que o engolia apesar de não poder viver sem ela.
Pois é nesse ponto, do qual não havia mais retorno
para Van Gogh, que a carta encontrada no bolso de seu casaco, aproximadamente
30 horas depois do disparo, significa o principal “bilhete” tão pretendido
pelos biógrafos. Uma carta sem data e que não foi enviada, o que não era
costume do missivista, não por falta de tempo, provavelmente por encerrar algo
que ele preferiu que fosse lido depois de sua morte. Tanto é que a carta veio
ao conhecimento de Theo quando foi iniciada a preparação do corpo para os
funerais.
Antes de se averiguar o conteúdo dessa carta, indícios
demonstram que o suicídio não estava fora dos propósitos de Van Gogh,
especificamente depois do segundo transtorno mental em Saint-Rémy, quando,
depois da tinta engolida, recuperou-se e pode finalmente ir aos arredores do
hospício para pintar. Numa tarde teve agudas alucinações auditivas e visuais,
mas conseguiu retornar com o alívio de poder fazer isso por conta própria. Se
não fosse isso, ele não teria escrito à mulher de Theo, Jo van Gogh-Bonger, o
que escreveu em 9 de maio de 1889. No final da carta ele diz que o medo e o
horror da loucura diminuíram, e, no início, “que o resultado deste terrível
ataque seja não haver mais em meu espírito quase nenhum desejo nem esperança
bem claros, e eu me pergunto se é assim que pensamos quando, as paixões já um
pouco extintas, começamos a descer a montanha em vez de subi-la”.
Comentar essa lúcida percepção de Van Gogh é aprender
para sempre que o período que antecede o suicídio é de uma estranha calma que
prepara o ato. Calma que vemos nas pinturas vertiginosas desse tempo, o pintor
no olho do furacão, no centro confortador da morte, tudo com uma nostalgia de
seu passado na Holanda. Não é assim que o fim de alguma coisa se manifesta? Por
acaso poderia existir alguém que, próximo da morte, não viu desfilar tantas
lembranças? Foi o que aconteceu com Van Gogh: basta olhar com bons olhos suas
últimas pinturas, sobretudo a obra-prima “Corvos nos trigais”, o principal
“bilhete” visual, que contracena com a carta não enviada, verdadeiro testamento
do pintor.
A carta-testamento começa como qualquer outra escrita
por Van Gogh, com a paciência de quem sabe que somente poderia “falar através”
de seus quadros, pois o assunto
daqueles dias tinha resoluções na teoria, não na prática – a venda de suas
pinturas. Dois parágrafos foram suficientes para situar esse assunto, logo
ampliado numa reflexão invejável em três parágrafos.
Pois
é, realmente só podemos falar através de nossos quadros. Contudo, meu caro
irmão, existe isto que eu sempre lhe disse e novamente voltarei a dizer com
toda a gravidade resultante dos esforços de pensamento assiduamente orientado a
tentar fazer o bem tanto quanto possível – volto a dizer-lhe novamente que
sempre o considerarei como alguém que é mais que um simples mercador de Corots,
que por meu intermédio participa da própria produção de certas telas, que mesmo
na catástrofe conserva sua calma.
Pois
assim é, e isto é tudo, ou pelo menos o principal, que eu tenho a lhe dizer num
momento de crise relativa. Num momento em que as coisas estão muito tensas
entre marchands de quadros de artistas mortos e de artistas vivos.
Pois
bem, em meu próprio trabalho arrisco a vida e nele minha razão arruinou-se em
parte – bom – mas pelo quanto eu saiba você não está entre os mercadores de
homens, e você pode tomar partido, eu acho, agindo realmente com humanidade,
mas, o que é que você quer?
Querer dizer mais do que diz esse testamento
seria um desrespeito à biografia de Van Gogh. E a biografia atual, Van Gogh – a vida, escrita por Steven
Naifeh e Gregory White Smith, não poderia subestimar tudo o que se reuniu antes
e depois do tiro fatal, embora tenham distorcido seus motivos. De qualquer
maneira, a morte do pintor tem em si o substrato dessa biografia, cujo mérito
coube a outro maldito detectar, Antonin Artaud: Van Gogh – o suicida da sociedade.
(Vargem,
Fpolis, final de março de 2013)