quarta-feira, 10 de abril de 2013

Acidente Mortal ou Suicídio (Van Gogh)

Por Jayro Schmidt


Vincent em 1866 (fonte: Wikipédia)

O tópico morte de Van Gogh, na biografia escrita por Steven Naifeh e Gregory White Smith, uma vez abordado exige detalhes semióticos de Dupin, os quais delimito com uma observação panorâmica: A nova versão da morte de Van Gogh, ao desautorizar a primeira versão, a do suicídio, acaba rendendo-se ao que dela refuta, ou seja, as suposições que são inevitáveis quando as provas cabais se esgotam. Nesse aspecto, as versões têm o mesmo peso que aceitamos ou não.

Segundo os biógrafos, a versão do suicídio não se sustenta e, como sabemos, serviu para alavancar a fama do holandês, aliás, versão de acordo com os episódios dramáticos de sua vida. Não se sustenta por não ter surgido nenhuma testemunha na época, a não ser o próprio Van Gogh, acrescentado-se que os apetrechos de pintura desapareceram, assim como a arma que podia pertencer ao hospedeiro Ravoux, em Auvers, que teria emprestado ao pintor ou vendido a René Secrétan, na época um rapaz com 16 anos, que com o pé na cova, aos 82 anos, tornou público o que sabia, incluindo o mais decisivo, que dele a arma foi roubada por Van Gogh.
O que disse Van Gogh, assim que foi perguntado pela polícia, que quis se matar e que ninguém era culpado, os biógrafos duvidaram da veracidade e, inclusive, interpretaram como se ele estivesse ocultando alguma coisa, ou seja: havia um culpado, quando, desde Arles, Van Gogh se sentia ameaçado e chegou a ameaçar algumas pessoas, sobretudo os rapazes que o chamavam de louco e atirando pedras. Em Arles, mais de cem assinaturas foram enviadas ao delegado numa petição, prender Van Gogh, o que aconteceu.
Por outro lado, Secrétan foi visto como a primeira fonte confiável, quando logo se constata que foi conveniente para os biógrafos. Para tanto, frisaram bem que ele estudou numa escola onde estudaram Verlaine, Proust e onde lecionaram Mallarmé e Sartre – como se isso assegurasse a respeitabilidade de todos que lá estudaram.
Sabe-se que Secrétan rapaz foi carente de atenção que resolvia com expedientes estimulados pelo álcool. Isso continuou dando sinais em sua vida de adulto, e quando Van Gogh começou a ficar famoso, vários testemunhos dizem o mesmo: Secrétan era um fanfarrão e várias vezes gabola dizia que foi amigo de Van Gogh e que dele a arma fora roubada. No entanto, a nota específica sobre a morte de Van Gogh, na biografia, nada diz sobre o caráter duvidoso e pernicioso de Secrétan, e prossegue.
Secrétan rapaz vivia pentelhando Van Gogh, que respondia furioso, ainda que com ele tenha esvaziado algumas garrafas, fator indispensável para o que os biógrafos vão concluir como “indícios disponíveis” com o testemunho tardio, mais de noventa anos depois da morte de Van Gogh, de Madame Liberge durante a década de 1960. Seu depoimento está no trecho que transcrevo para que não fiquem dúvidas acerca de suas contradições:

Madame Liberge descartou a versão tradicional de que Vincent recebera o ferimento mortal nos trigais adiante do cemitério de Auvers. Contou a Tralbault:

Não sei por que as pessoas não contam a verdadeira história. Não foi lá, perto do cemitério... [Van Gogh] saiu da Estalagem Ravoux na direção da vila Chaponval. Na Rue Boucher, ele entrou num pequeno terreiro. Lá ele se escondeu atrás da esterqueira. Então cometeu o ato que levou à sua morte poucas horas depois.

Não se sabe, no depoimento de Madame Liberge, como seu pai pode dizer que Van Gogh entrou naquele local. O trecho continua com justificativas acerca de sua respeitabilidade, que transmitiu à filha exatamente o que confiou a Tralbault, questionando porque informação tão importante somente veio à tona somente em 1960. E os biógrafos acrescentam:

Alguns anos depois, outra moradora de Auvers, chamada Madame Baize, confirmou a história de Madame Liberge ao contar a outro entrevistador que seu avô “viu Vincent sair da Estalagem Ravoux naquele dia e seguir na direção da vila de Chaponval”. A mesma testemunha disse ter visto Van Gogh entrar num pequeno terreiro da Rue Bolcher e então ouviu um disparo. Depois de esperar algum tempo, “ele entrou pessoalmente no terreiro”, segundo o relato de Madame Baize, “mas não havia ninguém à vista. Nenhuma arma, nenhum sangue, apenas um monte de esterco”.

É hora de ir por partes, cujos próprios detalhes se encarregam de anular o que os biógrafos disseram:

1. O relatado pelo avô de Madame Baize repete o do pai de Madame Liberge: ambos viram Van Gogh sair da hospedaria e entrar no terreiro que fica por volta de um quilômetro e meio de onde saiu, coisa que seria impossível.

2) Esta é a primeira grande contradição da biografia, que passou batida, pois os biógrafos fizeram do relato de Madame Baize, acrescido ao de Madame Liberge, o alicerce do que pretenderam demonstrar juntamente com as suposições de Secrétan.

3) E assim os biógrafos deram continuidade a depoimentos insustentáveis com a afirmação de que o avô de Madame Baize não viu o vitimado caído no tal terreiro e que, em vez de suicídio, o cenário foi o da ação de um agressor, Sécretan, que teria escapado e ocultado a arma e os pertences do agredido.

4) Conclui-se que o que foi transmitido por Madame Liberge e por Madame Baize não tem nenhuma credibilidade. Porém, os biógrafos não observaram essas evidências enganosas, ou não quiseram apesar de estarem cientes de algo que foi totalmente comprovado pela polícia e os médicos: com o aspecto do ferimento concluíram que o disparo ocorreu na primeira hora da tarde, e Van Gogh retornou do local quando anoiteceu, portanto mais de cinco horas depois. Se o avô de Madame Baize tivesse entrado no terreiro, por que nada viu no local, somente o monte de esterco? E assim, uma suposição maior precisa ter outras suposições adjacentes senão o edifício hipotético desmoronaria antes do tempo. Nisso os biógrafos foram habilidosos ao intermediarem o que ficou provado e o que jamais será provado:

a) Segundo eles seria mais fácil Van Gogh ter sido visto retornando dos trigais, cujo acesso era bastante habitado e com pessoas nas varandas das casas por se tratar de um domingo com temperatura amena, o que não aconteceu. No caminho da vila de Chaponval, pelo contrário, não foi visto em função do lugar despovoado, cujas mínimas habitações o anoitecer convidava trancar portas e janelas.

b) Por outro lado, o exame policial e médico da perfuração da bala, entre o estômago e o peito, além de revelar que foi disparada por uma arma leve, como a de Ravoux, não foi a queima roupa e de pouca distância, porém sem que tenham dito qual, daí, segundo os biógrafos, a possibilidade do disparo acidental na escaramuça que Van Gogh teria se envolvido com quem vinha tendo contrariedades, Secrétan, que, segundo a suposição absurda e sem prova, estava no local do disparo, o terreiro adentrado pelo pintor.

c) Secrétan lá esteve, conforme a descrição de Steven e Gregory, por ser um local perto do pesqueiro de sua preferência e por não largar o pé de Van Gogh. E Secrétan não deixava de portar a arma de Ravoux, que logo tirou o seu da reta dizendo que havia, como já foi mencionado, emprestado a Van Gogh para espantar os corvos que o importunavam nos trigais. Desta forma, Ravoux esquivou-se de maiores envolvimentos na questão, sendo suicídio ou acidente.

Tais argumentos parecem validar a versão do acidente, enquanto a do suicídio exigiria, segundo os biógrafos, uma familiaridade de Van Gogh com as armas, o que ele não tinha, somente com venenos. Assim, o pintor não poderia ter se suicidado desta maneira, ainda mais com um disparo numa parte do corpo, a do estômago, a parte que as estatísticas registram como a menos utilizada por quem quer chegar a tanto. E Van Gogh não deixou nenhum bilhete! Como se todos os suicidas fizessem isso, como se todos eles visassem a cabeça, e como se não fosse possível a quem desconhece armas empregá-las se necessário.
Desnecessário é continuar argumentando sobre isso, sobretudo por se saber da literatura legista que as pistas deixadas pelo suicida ou pelo homicida são reconhecidas posteriormente, umas facilmente, outras nem tanto, e ainda outras jamais vislumbradas. É claro que todos os sinais deixados são examinados em nome da veracidade à medida que são descartadas as inveracidades.
Não foi o que aconteceu com os biógrafos, com a ressalva de que não agiram de má-fé, embora tenham sido sensacionalistas por meio de algo que se tornou frágil assim que as provas se esgotaram, acumulando fantasias na mesma proporção da versão do suicídio.
Como já foi dito, o mais legítimo para a versão do acidental – e que serve também para a versão do suicídio –, foi o aspecto do ferimento que revelou o ângulo oblíquo e a pequena distância da arma na hora do disparo. Mesmo assim, com o disparo à curta distância, que favorece o uso da arma por outra pessoa ou com duas envolvidas em luta, não se descarta a possibilidade do próprio Van Gogh ter desferido o tiro de uma distância compatível com o tamanho de seu braço, que não era pequeno, o que dá uma distância suficiente e oblíqua ao se manter uma arma contra o próprio corpo. A única forma de mudar essa posição, tornando-a perpendicular ao corpo, seria empunhar a coronha com uma das mãos, dispondo da outra e do dedão para acionar o gatilho. Mesmo assim, no momento em que começa o impacto dentro da arma, o cano pode desviar-se da posição inicial se a arma não estiver bem empunhada. Algo parecido ocorre com frequência nas tentativas de suicídio uma vez a arma fixada contra a cabeça, que pode com o impacto resvalar.
Reafirma-se aqui o que a polícia e os médicos atestaram: a arma esteve posicionada numa diagonal em relação ao perfurado. Quanto ao local do acontecimento, e sem levar em conta as contradições de testemunhos e tudo o que tem de vago nas hipóteses, é bem provável que o cenário do tiro tenha sido o do terreiro, porém tiro proposital, suicida, e o próprio Van Gogh se desfazendo dos apetrechos e da arma.
Não sei se vale a pena mencionar que os biógrafos, sobre isso, cometeram o maior disparate: se Van Gogh queria se matar, não teria saído da hospedagem com tantas coisas, e ao ver que o tiro dado não foi o suficiente, teria dado outro. Bem se vê que eles desconsideraram o tempo entre o disparo e a hora em que Van Gogh recobrou a consciência, além de nada saberem sobre o efeito instantâneo que um ato frustrado provoca, totalmente contrário ao que se pretende, sobretudo nas tentativas de suicídio. Isso sem considerar que o disparo no caso de Van Gogh, por ter a bala se alojado perto da coluna vertebral, de forma alguma poderia deixá-lo desperto ou semi-desperto. Tanto é que retornou do local bem mais tarde com o corpo curvado por estar sentindo muita dor. Se o disparo tivesse atingido algum órgão, cuja constatação não exige conhecimentos médicos, a perda de sangue seria tanta que impossibilitaria qualquer movimento e ele não poderia sair do terreiro a não ser com a ajuda de alguém.
Nisso os biógrafos foram às raias da ignorância, pois se desconhece casos assim no histórico dos suicídios. O que se conhece é que tentativas frustradas são corrigidas em outra oportunidade. Ou o contrário: desistências após a primeira, como também de outras tentativas. E quem não sabe que a impotência diante de problemas existenciais provoca a potencialização do suicídio? Se essa potencialização não chega ao efeito de sua causa, retorna com redobrada força a covardia dos suicidas.
Isso vale de relativa maneira para os homicidas, o que também girou na mente de Van Gogh no desfecho com Gauguin, que segundo o próprio foi perseguido por ele e alcançado na praça Lamartine, em Arles, com a navalha. Por estas, e por outras atitudes de Van Gogh, não restam dúvidas que poderia matar alguém ou se matar numa altura de sua vida em que foi alvo de desconfianças e chacotas as mais humilhantes.

Depois dessas considerações, nada melhor do que pensar sobre a problemática mesma de Van Gogh com antecedentes bem marcados em direção de uma solução definitiva de seu existir.
Depois do episódio da orelha cortada, em cartas ao irmão Theo fica claro que Van Gogh conscientizou-se de sua condição perigosa para ele mesmo e para os demais. Admitiu-se como louco e chegou a dizer que seria a sua “profissão”, preferindo, em consequência, internar-se por conta própria, o que aconteceu depois do inevitável internamento em Arles, indo para o hospício Saint-Paul de Mausole, em Saint-Rémy, um mosteiro medieval que em parte concordava com o que escrevera de Arles a Theo, referindo-se à sua “dupla personalidade, uma de monge e outra de pintor”. Entretanto, em outra carta a uma de suas irmãs, Van Gogh voltou a frisar que não queria “ter uma vida de mártir”, que procurava “sempre outra coisa que não fosse o heroísmo” apesar de admirar em outros, enfatizando que esse não era seu “dever”, nem seu “ideal”.
Citei esta passagem para poder fundamentar o fato dos biógrafos terem afirmado que o disparo, que para eles foi acidental e envolvendo outra pessoa ou mais, foi providencial para quem precisava da morte, mas sem coragem de perpetrá-la, então saindo da vida como “mártir”. Isso foi baseado nas refutações dessa forma vergonhosa e recriminada de morrer por Van Gogh, todas estampadas em cartas. Outra vez os biógrafos caíram no questionável ao privilegiarem determinadas convicções de Van Gogh em detrimento de outras não menos importantes, exemplificadas acima.

No hospício de Saint-Rémy, prosseguindo as reações psíquicas autopunitivas de Van Gogh nos desastres passionais, da mão queimada ao corte da orelha, outra vez ele perdeu o prumo emocional que redundou no engolir a tinta, o material oleoso da pintura, um suicídio simbólico, engolir a pintura que o engolia apesar de não poder viver sem ela.
Pois é nesse ponto, do qual não havia mais retorno para Van Gogh, que a carta encontrada no bolso de seu casaco, aproximadamente 30 horas depois do disparo, significa o principal “bilhete” tão pretendido pelos biógrafos. Uma carta sem data e que não foi enviada, o que não era costume do missivista, não por falta de tempo, provavelmente por encerrar algo que ele preferiu que fosse lido depois de sua morte. Tanto é que a carta veio ao conhecimento de Theo quando foi iniciada a preparação do corpo para os funerais.
Antes de se averiguar o conteúdo dessa carta, indícios demonstram que o suicídio não estava fora dos propósitos de Van Gogh, especificamente depois do segundo transtorno mental em Saint-Rémy, quando, depois da tinta engolida, recuperou-se e pode finalmente ir aos arredores do hospício para pintar. Numa tarde teve agudas alucinações auditivas e visuais, mas conseguiu retornar com o alívio de poder fazer isso por conta própria. Se não fosse isso, ele não teria escrito à mulher de Theo, Jo van Gogh-Bonger, o que escreveu em 9 de maio de 1889. No final da carta ele diz que o medo e o horror da loucura diminuíram, e, no início, “que o resultado deste terrível ataque seja não haver mais em meu espírito quase nenhum desejo nem esperança bem claros, e eu me pergunto se é assim que pensamos quando, as paixões já um pouco extintas, começamos a descer a montanha em vez de subi-la”.

Comentar essa lúcida percepção de Van Gogh é aprender para sempre que o período que antecede o suicídio é de uma estranha calma que prepara o ato. Calma que vemos nas pinturas vertiginosas desse tempo, o pintor no olho do furacão, no centro confortador da morte, tudo com uma nostalgia de seu passado na Holanda. Não é assim que o fim de alguma coisa se manifesta? Por acaso poderia existir alguém que, próximo da morte, não viu desfilar tantas lembranças? Foi o que aconteceu com Van Gogh: basta olhar com bons olhos suas últimas pinturas, sobretudo a obra-prima “Corvos nos trigais”, o principal “bilhete” visual, que contracena com a carta não enviada, verdadeiro testamento do pintor.
A carta-testamento começa como qualquer outra escrita por Van Gogh, com a paciência de quem sabe que somente poderia “falar através” de seus quadros, pois o assunto daqueles dias tinha resoluções na teoria, não na prática – a venda de suas pinturas. Dois parágrafos foram suficientes para situar esse assunto, logo ampliado numa reflexão invejável em três parágrafos.

Pois é, realmente só podemos falar através de nossos quadros. Contudo, meu caro irmão, existe isto que eu sempre lhe disse e novamente voltarei a dizer com toda a gravidade resultante dos esforços de pensamento assiduamente orientado a tentar fazer o bem tanto quanto possível – volto a dizer-lhe novamente que sempre o considerarei como alguém que é mais que um simples mercador de Corots, que por meu intermédio participa da própria produção de certas telas, que mesmo na catástrofe conserva sua calma.
Pois assim é, e isto é tudo, ou pelo menos o principal, que eu tenho a lhe dizer num momento de crise relativa. Num momento em que as coisas estão muito tensas entre marchands de quadros de artistas mortos e de artistas vivos.
Pois bem, em meu próprio trabalho arrisco a vida e nele minha razão arruinou-se em parte – bom – mas pelo quanto eu saiba você não está entre os mercadores de homens, e você pode tomar partido, eu acho, agindo realmente com humanidade, mas, o que é que você quer?

Querer dizer mais do que diz esse testamento seria um desrespeito à biografia de Van Gogh. E a biografia atual, Van Gogh – a vida, escrita por Steven Naifeh e Gregory White Smith, não poderia subestimar tudo o que se reuniu antes e depois do tiro fatal, embora tenham distorcido seus motivos. De qualquer maneira, a morte do pintor tem em si o substrato dessa biografia, cujo mérito coube a outro maldito detectar, Antonin Artaud: Van Gogh – o suicida da sociedade.

(Vargem, Fpolis, final de março de 2013)


2 comentários:

Daniel Ballester disse...

Steven Naifeh e Gregory White Smith querem ser corvos porém nao sabem voar

Anônimo disse...

muito bem Daniel, eu só saberia dizer que os americanos são cascateiros.