quinta-feira, 23 de maio de 2013

A “CRIANÇA”


Por Jayro Schmidt


No passado, quando escrever era com pena e tinta, alguns escritores causavam contrariedades nos revisores e nos tipógrafos. Marcel Proust foi um deles, e dos mais inconvenientes. Com o texto composto, tudo ficava mais adequado para ler e corrigir com as provas impressas. Em seu caso, foram mais acréscimos que passavam por várias etapas até ele concluir que a coisa tinha a forma de um cristal. Não porque Proust fosse um escritor limitado. Pelo contrário: os acréscimos surgiam em função da matéria-prima de sua obra, a rememoração, que nunca se dá por completa, ou melhor, surge ao longo do tempo com imagens que têm sentidos em outras imagens, daí as mudanças graduais de seus personagens, cada qual com pontos de vista diferentes sobre as mesmas coisas ao longo de suas vidas presentificadas no monumental Em busca do tempo perdido.
Quase todos os originais escritos à mão que se conhece têm reparos, além de podermos ver a caligrafia dos escritores, o que proporciona, por assim dizer, uma intimidade com eles. Disse quase porque há o caso dos originais do suíço Robert Walser, que nunca se corrigia. Walser parou de escrever quando foi internado em Herisau, dizendo que “estava ali para ser louco e não fazer literatura”. De 1924 a 1932 escreveu os “microgramas”, textos em grafia tão diminuta que os primeiros editores, após a sua morte em 1956, levaram mais de quinze anos para decifrá-los. Escrevia a lápis e em qualquer tipo de papel que encontrava, o que lembra o nosso pós-simbolista Ernani Rosas, que também fazia o mesmo e com canetas de cores diferentes, porém com letras grandes, mas ilegíveis em sua maior parte. Vamos dizer que Ernani Rosas se corrigia de uma forma muito especial – não nos poemas que havia escrito, nas versões que elaborava de alguns deles, com os quais fazia plaquetes à mão, que são pequenos cadernos.
Por estes, e por outros detalhes, acredita-se que na grafia estão os indícios psíquicos da pessoa, assim como acontece com o sonho, a ponto de se poder dizer que o material onírico é uma caligrafia para o interpretador e, por outro lado, a fonte inesgotável para se observar e tirar conclusões acerca de como os alfabetos surgiram antecedidos por períodos adormecidos das linguagens.
Como sou obstinado em saber quando o desenho passa a ser escrita, nas pesquisas compartilhei o fascínio de civilizações antigas quando obtiveram sistemas verbais codificados em sinais, todos oriundos do ler a natureza com mimetismo e animismo que criaram as línguas matrizes de outras línguas, como o russo, façanha do missionário bizantino Cirilo, fundido do grego e forjado com as pegadas dos pássaros. Por isso, se lermos Iessiênin, ouviremos a nostalgia lírica do campo e de seu contemporâneo Maiakóvski o brado revolucionário na tempestade das palavras.
Mas, deixando de lado essas propriedades de linguagem subentendidas nas semelhanças e nas associações que são ferramentas para se compreender a psique e suas expressões, volto ao tema principal que em Proust foi uma exigência própria de sua mente transportada ao passado, porém com características diferentes em outros escritores. Gustave Flaubert é o mais notável. Disse que não apressava a frase, que a trabalhava exaustivamente até conseguir o perfeito como se escrever fosse um problema matemático, e, então, seguia em frente, dando ao editor a “criança” pronta, bem lavada e bem vestida. Flaubert dignificou o que os franceses diziam, corriqueiramente, mot juste, a palavra exata. Não é à toa que quando se pergunta aos escritores sobre o ofício de escrever, geralmente o primeiro nome lembrado é Flaubert, sem falar que muitos destes escritores nunca leram esse monstro da limpidez literária. A literatura, desde então e não somente por causa de Flaubert, teve que se confrontar com o construir a frase com todos os riscos, principalmente dois, textos que dizem demais e textos que dizem de menos.
Não quero supor com isso que o escritor deva obter o equilíbrio entre os dois riscos. Afinal, ninguém consegue ficar em cima do muro por muito tempo. O que o escritor precisa fazer, pelo menos na concepção que tenho do escrever, é permanecer na instabilidade, na probabilidade. Algo assim como nos aforismos de Franz Kafka, o do outono com o caminho que é varrido e logo cobre-se de folhas secas; o da corda esticada rente ao chão, destinada ao tropeço e não à orientação; e, o mais crucial, o aforismo do ponto que deve ser atingido e do qual não há mais retorno.
Vejo agora que comecei comentando a escrita e o escrever e acabei chegando a aspectos da escritura. Os aforismos de Kafka serviram como metáfora, mas talvez, para esclarecer assunto tão vasto e complexo, seja necessário relembrar um acontecimento no cotidiano do escritor que disse que escrevia para se ajudar a pensar. Estou me referindo a Macedonio Fernández, amigo de Jorge Luis Borges, a quem confiou o episódio que ilustra o ato de pensar no escrito como risco permanente. Macedonio caminhava conversando com outra pessoa quando tropeçou e foi lançado para frente e, nesse transcurso cuja vertigem provoca a sensação de flutuar, captou o que havia acabado de dizer.
Se o pensar no escrever de fato precisa da virtualidade ou vem dessa vertigem, da flutuação de sentidos que poderá ser o tecido da escrita, então o dizer demais ou de menos depende de como se afaga um gato, que jamais gosta a contrapelo. Os textos arrebatadores, tenham certeza, são aqueles em que as palavras nos transmitem a imagem de onde vieram e mostram, durante a leitura, como chegaram. Assim como o gato, que aparece e se deixa familiarizar por quem teve a sorte de encontrá-lo, é esse escrever. Portanto, um texto surge, um texto é elaborado e, o mais costumeiro, um texto intermedia ambas as modalidades.
Exemplos esmerados dessas modalidades não faltam na literatura e na arte em geral, como também, na maioria, tantos outros exemplos em que os autores jogaram fora a “criança” junto com a água do banho.


Um comentário:

Daniel Ballester disse...

Sílaba silbada como la chispa de la bala que da en el blanco sin otro atenuante que el dedo en el gatillo, la palabra entinta el papel sin otro recurso que el método.
Lavada la baba, los niños nos hablan, nos salan, nos sanan.
El pequeño Prost, la pequeña Alejandra, o menino Franz bailan un vals alrededor del barco sin velas.