Por Jayro Schmidt
A arte é uma determinação do medium-de-reflexão,
provavelmente a mais fecunda que ele recebeu.
Walter Benjamin
O pintor romântico alemão, Caspar David Friedrich
(1774-1840), realizou uma das obras mais reflexivas numa época de acentuadas
contradições históricas, entre dois mundos paralelos e antagônicos.
Aliás, foi a consciência reflexiva que caracterizou os
românticos, impulsionados pela subjetividade que, muitas vezes, chegou a
extremos irracionais que a crítica de arte chamou de idealismo mágico, situando-o como meio de reflexão interpretativa,
que para Friedrich Schlegel e Novalis tornou-se um verdadeiro culto anímico.
A irracionalidade nas obras, entretanto, tem o
significante do imaginário místico e histórico, ou messiânico como pensou
Walter Benjamin no opúsculo O conceito de
crítica de arte no romantismo alemão.
Essa propensão, que estava vinculada ao Sturm und Drang, Tempestade e Ímpeto, enunciou que a forma era o lugar da reflexão,
na qual está a origem transformadora elucidada por Benjamin não como “o
pensamnento que engendra o seu objeto” no sentido kantiano da intuição
intelectual, porém “pensamento que engendra sua forma” no campo da
subjetividade, provedora de uma visão do instante que hospeda o passado como
hipótese do futuro. Tal reflexão, como prática do conhecimento perceptivo, é a
forma de uma ideia que, no caso da pintura, é a representação imagística como
se reconhece nas paisagens de Friedrich.
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Nos estudos acadêmicos, Friedrich teve a sorte de ter
como mestres seguidores do Sturm und
Drang, e, em Dresden, cidade que concentrava os românticos, conheceu o
pintor Phillip Otto Runge, que o introduziu no círculo romântico que levava a
efeito reações intempestivas contra o racionalismo, de tonalidades neoclássicas,
que havia influenciado toda uma geração de pintores e escritores alemães. O
próprio Friedrich foi arrebatado pelo realismo neoclássico, mas foi o idealismo
romântico que acabou levando-o à reflexibilidade pictórica sobre a natureza e a
cultura, antecipando em algumas décadas a simbolização na pintura moderna.
Pois é no teor do símbolo que Friedrich conciliou o
que a princípio é antípoda nos dispositivos realistas e idealistas. Ambas as
percepções não se complementam pela própria natureza de suas manifestações, as
imagens realistas previsíveis e as imagens idealistas imprevisíveis, e que
teriam melhor caracterização como imanentes nas primeiras, e, nas segundas,
como transcendentes.
A uniformidade real das imagens não interessava a
Friedrich, porém um conjunto de conexões ideais que ao longo de suas pinturas
foi obtendo imagens específicas com variações em torno da natureza e do humano.
Esses seriam os seus focos visuais desde que se considere que a imagem surge em
função das relações entre o exterior e o interior, o que significa dizer que
toda apreensão se dá por síntese e análise da imagem. E se há síntese na
pintura de Friedrich é porque ele soube analisar as aparências,
transformando-as em aparições.
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Indo além da superfície das coisas, por assim dizer
penetrando-as com determinados propósitos da imagem, Friedrich reatualizou a
problemática da representação tal como vinha sendo elaborada desde que o dado
perspectivo deixou de ser absoluto, suplantado pela relatividade espacial e
temporal proveniente da revolução copernicana. Assim, ao pensar a forma
propriamente dita das imagens, Friedrich abalou a tradição do pitoresco e do
sublime ao transferir pressupostos estéticos acadêmicos para o âmbito da
visibilidade das sensações, isto é, a pintura como percepção nascente de
referências subjetivas que pudessem estabilizar realidade e imaginação. Esses
possíveis psicofisiológicos estavam sendo motivados pela empatia e pela
sinestesia, que diferem entre si em graus e não em natureza. Afinal, os
artistas românticos voltaram a confiar nas sensações, fazendo delas o aferente
e o eferente na atividade mental que deveria abreviar a distância entre a
subjetividade e a objetividade. Desta maneira, e tendo como exemplo abrangente
a pintura de Friedrich, a representação visou a configuração de ideias, nas
quais particularidades e propriedades da linguagem foram indispensáveis para
trazer à vista a força oculta da simbolização.
Não seria um absurdo supor, nesse caso, que Friedrich
tenha intuído uma sintaxe visual com as escolhas que fez ao longo de seu estudo
da natureza e da cultura. Da natureza Friedrich não descurou o mistério e sua
hostilidade, expressando as forças naturais como sendo existências anímicas,
dotadas de vontade própria em contraste com a vontade do homem, porém
desmobilizada pelo inevitável surgimento da mecanização industrial. Tanta
energia armazenada na natureza de nada valeria se não fosse canalizada em
termos de progresso. Pois é a essa entropia, dura em aplicações racionais, que
Friedrich vai reagir com discernimento e reconhecimento, os avatares da
sensibilidade no sentido mais pleno da memória.
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Todas as percepções remontam às lembranças. Numa
observação mais acurada, as lembranças também provocam percepções.
Concomitantes, a memória é então um reservatório de experiências sensíveis que
geralmente se manifestam com imagens que tendem a se corresponder por analogias,
formando focos de atenção porque escolhas são feitas pela vontade de
reconhecimento, na qual, pelo menos na elaboração artística, junta-se o discernimento
que filtra cada um deles a ponto de predominar raríssimas imagens-lembranças.
Pois é esse repertório o testemunho de toda a memória de um indivíduo e de toda
uma época e da obra que eventualmente ele realiza.
A eventualidade é mencionada em função do surgir e do
elaborar, entre os quais há um impulso imaginário que o artista, como
Friedrich, contorna com a plenitude da percepção consciente ao discernir origem
de gênese. Não foi por acaso que Friedrich fez algumas escolhas que seu
sentimento poético atribuiu a alguns lugares, especificamente a certos
detalhes, as passagens naturais de formações rochosas, oferecidas como portais,
lugares de concentração de energias apaziguadoras mas também inquietantes que
trazem de volta o temor do indeterminado, e, como temor, mobiliza o desafio
diante do desconhecido com o maravilhoso símbolo da expectativa.
Nestas pinturas, nas quais há a contemplação de
fronteiras, o pintor testemunha o limite entre a natureza e o homem,
estetizando-a como paisagem para, em seguida e gradualmente, reverter a representação
em apresentação da forma simbólica, que é uma convenção icônica capaz de
orientar semioticamente a testemunha, o próprio Friedrich diante da natureza.
De um modo geral a pintura é analógica, mais ainda a
romântica, povoada de sensações e percepções relativas a impasses entre a
essência e a existência. Sabe-se que o ato perceptivo desperta lembranças, como
se no sentir já estivesse o sentido do presente que rememora o que está armazenado
na memória. O rememorar em Friedrich, nesse aspecto, tem a atmosfera sombria da
natureza nórdica intermediada por seu temperamento taciturno, habitado que foi
pela solidão, daí a nostalgia e a melancolia de sua pintura que, pela força da
sublimidade, é evocativa, epifânica.
E as sensações, que preparam as percepções, foram encontrando
em Friedrich as presenças do existir adequadas e definitivas do ponto de vista
da imaginação. Das passagens naturais os portais simbolizados e destes as
ruínas que encontrava em suas andanças, e, na plenitude da rememoração, os
túmulos abandonados como reverência e homenagem a personalidades que foram
destinados ao reflexo de uma mesma visão, a única visão que poderiam ter
aqueles homens, o pressentimento da perda da vida mítica e idílica que um dos
decanos do romantismo, Goethe, anunciou nas metamorfoses de Fausto.
A Friedrich cabe perfeitamente a sabedoria antiga que
diz que se a natureza pudesse falar, se lamentaria. Mesmo assim, ainda há
resquícios de reanimação em seus personagens de cultura contemplando a
imensidão natural, meditativos no fluxo da aparência, na finitude e na
infinitude. Uma religiosidade traduzida pela transferência da coisa vista
naquele que vê, porém religação nada ingênua porque Friedrich prenuncia o
romantismo de história em “Naufrágio do Esperança” com a hostilidade da
natureza, a catástrofe mesma e, por extensão, a pintura catástrofe, convulsiva
e convulsionando o analógico no que tem de similitude, em parte abstraindo, com
a forma geometrizada, detalhes de superfície para tornar visível o invisível.
Quase uma ciografia que antes Friedrich havia exprimido por meio de
transparências ou na fusão de matérias macias que vão da meditação ao devaneio
e deste ao onírico.
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Dizer que o analógico em pintura gira em torno da
similitude é pouco. No desvio da predominância do narrativo e da descrição com
os primeiros pintores modernos, o semelhante foi esbatido pela evidência de
qualidades pictóricas que em Friedrich, e outros românticos, prenunciam o
relacional da visão que para Goethe é háptica
na teoria das cores, e mágica na
metafísica do romantismo alemão. A pintura de Friedrich que mais se aproxima de
ambos os postulados é, sem dúvida, o singelo monge diante do oceano.
Sem abrir mão da ideia de que a natureza é
revelatória, Friedrich dotou a matéria pictórica de sutil sugestão simbólica,
pintura então de percepções pensadas, pintura que se pensava nele através da
paisagem, o que não é apenas uma coincidência com o florescimento das filosofias
da existência, de fundo fenomenológico e ontológico que, numa linha que se pode
traçar entre Friedrich e Kierkegaard, nota-se que o sensível, diante do
equilíbrio instável entre natureza e história, encontrou repercussão no
estético, no ético e no religioso.
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