quarta-feira, 1 de maio de 2013

O Paisagista do imaginário

Por Jayro Schmidt


A arte é uma determinação do medium-de-reflexão,
provavelmente a mais fecunda que ele recebeu.

Walter Benjamin


O pintor romântico alemão, Caspar David Friedrich (1774-1840), realizou uma das obras mais reflexivas numa época de acentuadas contradições históricas, entre dois mundos paralelos e antagônicos.
Aliás, foi a consciência reflexiva que caracterizou os românticos, impulsionados pela subjetividade que, muitas vezes, chegou a extremos irracionais que a crítica de arte chamou de idealismo mágico, situando-o como meio de reflexão interpretativa, que para Friedrich Schlegel e Novalis tornou-se um verdadeiro culto anímico.
A irracionalidade nas obras, entretanto, tem o significante do imaginário místico e histórico, ou messiânico como pensou Walter Benjamin no opúsculo O conceito de crítica de arte no romantismo alemão.
Essa propensão, que estava vinculada ao Sturm und Drang, Tempestade e Ímpeto, enunciou que a forma era o lugar da reflexão, na qual está a origem transformadora elucidada por Benjamin não como “o pensamnento que engendra o seu objeto” no sentido kantiano da intuição intelectual, porém “pensamento que engendra sua forma” no campo da subjetividade, provedora de uma visão do instante que hospeda o passado como hipótese do futuro. Tal reflexão, como prática do conhecimento perceptivo, é a forma de uma ideia que, no caso da pintura, é a representação imagística como se reconhece nas paisagens de Friedrich.


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Nos estudos acadêmicos, Friedrich teve a sorte de ter como mestres seguidores do Sturm und Drang, e, em Dresden, cidade que concentrava os românticos, conheceu o pintor Phillip Otto Runge, que o introduziu no círculo romântico que levava a efeito reações intempestivas contra o racionalismo, de tonalidades neoclássicas, que havia influenciado toda uma geração de pintores e escritores alemães. O próprio Friedrich foi arrebatado pelo realismo neoclássico, mas foi o idealismo romântico que acabou levando-o à reflexibilidade pictórica sobre a natureza e a cultura, antecipando em algumas décadas a simbolização na pintura moderna.
Pois é no teor do símbolo que Friedrich conciliou o que a princípio é antípoda nos dispositivos realistas e idealistas. Ambas as percepções não se complementam pela própria natureza de suas manifestações, as imagens realistas previsíveis e as imagens idealistas imprevisíveis, e que teriam melhor caracterização como imanentes nas primeiras, e, nas segundas, como transcendentes.
A uniformidade real das imagens não interessava a Friedrich, porém um conjunto de conexões ideais que ao longo de suas pinturas foi obtendo imagens específicas com variações em torno da natureza e do humano. Esses seriam os seus focos visuais desde que se considere que a imagem surge em função das relações entre o exterior e o interior, o que significa dizer que toda apreensão se dá por síntese e análise da imagem. E se há síntese na pintura de Friedrich é porque ele soube analisar as aparências, transformando-as em aparições.


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Indo além da superfície das coisas, por assim dizer penetrando-as com determinados propósitos da imagem, Friedrich reatualizou a problemática da representação tal como vinha sendo elaborada desde que o dado perspectivo deixou de ser absoluto, suplantado pela relatividade espacial e temporal proveniente da revolução copernicana. Assim, ao pensar a forma propriamente dita das imagens, Friedrich abalou a tradição do pitoresco e do sublime ao transferir pressupostos estéticos acadêmicos para o âmbito da visibilidade das sensações, isto é, a pintura como percepção nascente de referências subjetivas que pudessem estabilizar realidade e imaginação. Esses possíveis psicofisiológicos estavam sendo motivados pela empatia e pela sinestesia, que diferem entre si em graus e não em natureza. Afinal, os artistas românticos voltaram a confiar nas sensações, fazendo delas o aferente e o eferente na atividade mental que deveria abreviar a distância entre a subjetividade e a objetividade. Desta maneira, e tendo como exemplo abrangente a pintura de Friedrich, a representação visou a configuração de ideias, nas quais particularidades e propriedades da linguagem foram indispensáveis para trazer à vista a força oculta da simbolização.
Não seria um absurdo supor, nesse caso, que Friedrich tenha intuído uma sintaxe visual com as escolhas que fez ao longo de seu estudo da natureza e da cultura. Da natureza Friedrich não descurou o mistério e sua hostilidade, expressando as forças naturais como sendo existências anímicas, dotadas de vontade própria em contraste com a vontade do homem, porém desmobilizada pelo inevitável surgimento da mecanização industrial. Tanta energia armazenada na natureza de nada valeria se não fosse canalizada em termos de progresso. Pois é a essa entropia, dura em aplicações racionais, que Friedrich vai reagir com discernimento e reconhecimento, os avatares da sensibilidade no sentido mais pleno da memória.


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Todas as percepções remontam às lembranças. Numa observação mais acurada, as lembranças também provocam percepções. Concomitantes, a memória é então um reservatório de experiências sensíveis que geralmente se manifestam com imagens que tendem a se corresponder por analogias, formando focos de atenção porque escolhas são feitas pela vontade de reconhecimento, na qual, pelo menos na elaboração artística, junta-se o discernimento que filtra cada um deles a ponto de predominar raríssimas imagens-lembranças. Pois é esse repertório o testemunho de toda a memória de um indivíduo e de toda uma época e da obra que eventualmente ele realiza.
A eventualidade é mencionada em função do surgir e do elaborar, entre os quais há um impulso imaginário que o artista, como Friedrich, contorna com a plenitude da percepção consciente ao discernir origem de gênese. Não foi por acaso que Friedrich fez algumas escolhas que seu sentimento poético atribuiu a alguns lugares, especificamente a certos detalhes, as passagens naturais de formações rochosas, oferecidas como portais, lugares de concentração de energias apaziguadoras mas também inquietantes que trazem de volta o temor do indeterminado, e, como temor, mobiliza o desafio diante do desconhecido com o maravilhoso símbolo da expectativa.
Nestas pinturas, nas quais há a contemplação de fronteiras, o pintor testemunha o limite entre a natureza e o homem, estetizando-a como paisagem para, em seguida e gradualmente, reverter a representação em apresentação da forma simbólica, que é uma convenção icônica capaz de orientar semioticamente a testemunha, o próprio Friedrich diante da natureza.




De um modo geral a pintura é analógica, mais ainda a romântica, povoada de sensações e percepções relativas a impasses entre a essência e a existência. Sabe-se que o ato perceptivo desperta lembranças, como se no sentir já estivesse o sentido do presente que rememora o que está armazenado na memória. O rememorar em Friedrich, nesse aspecto, tem a atmosfera sombria da natureza nórdica intermediada por seu temperamento taciturno, habitado que foi pela solidão, daí a nostalgia e a melancolia de sua pintura que, pela força da sublimidade, é evocativa, epifânica.
E as sensações, que preparam as percepções, foram encontrando em Friedrich as presenças do existir adequadas e definitivas do ponto de vista da imaginação. Das passagens naturais os portais simbolizados e destes as ruínas que encontrava em suas andanças, e, na plenitude da rememoração, os túmulos abandonados como reverência e homenagem a personalidades que foram destinados ao reflexo de uma mesma visão, a única visão que poderiam ter aqueles homens, o pressentimento da perda da vida mítica e idílica que um dos decanos do romantismo, Goethe, anunciou nas metamorfoses de Fausto.




A Friedrich cabe perfeitamente a sabedoria antiga que diz que se a natureza pudesse falar, se lamentaria. Mesmo assim, ainda há resquícios de reanimação em seus personagens de cultura contemplando a imensidão natural, meditativos no fluxo da aparência, na finitude e na infinitude. Uma religiosidade traduzida pela transferência da coisa vista naquele que vê, porém religação nada ingênua porque Friedrich prenuncia o romantismo de história em “Naufrágio do Esperança” com a hostilidade da natureza, a catástrofe mesma e, por extensão, a pintura catástrofe, convulsiva e convulsionando o analógico no que tem de similitude, em parte abstraindo, com a forma geometrizada, detalhes de superfície para tornar visível o invisível. Quase uma ciografia que antes Friedrich havia exprimido por meio de transparências ou na fusão de matérias macias que vão da meditação ao devaneio e deste ao onírico.




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Dizer que o analógico em pintura gira em torno da similitude é pouco. No desvio da predominância do narrativo e da descrição com os primeiros pintores modernos, o semelhante foi esbatido pela evidência de qualidades pictóricas que em Friedrich, e outros românticos, prenunciam o relacional da visão que para Goethe é háptica na teoria das cores, e mágica na metafísica do romantismo alemão. A pintura de Friedrich que mais se aproxima de ambos os postulados é, sem dúvida, o singelo monge diante do oceano.
Sem abrir mão da ideia de que a natureza é revelatória, Friedrich dotou a matéria pictórica de sutil sugestão simbólica, pintura então de percepções pensadas, pintura que se pensava nele através da paisagem, o que não é apenas uma coincidência com o florescimento das filosofias da existência, de fundo fenomenológico e ontológico que, numa linha que se pode traçar entre Friedrich e Kierkegaard, nota-se que o sensível, diante do equilíbrio instável entre natureza e história, encontrou repercussão no estético, no ético e no religioso.


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