Por Ivan Schmidt
Resenha de No sertão das palavras, leitura de Grande Sertão: Veredas – Jayro Schmidt
Ilustração de Jayro Schmidt
Mais um estudo analítico sobre o monumento
literário que é Grande Sertão: Veredas já não tem o sabor da novidade, pois
tantos foram os críticos que se aventuraram a percorrer os dificultosos
caminhos trilhados por Joca Ramiro, Medeiro Vaz, Zé Bebelo e Hermógenes, entre
outros, cujos encontros e desencontros foram narrados pelo jagunço Riobaldo
Tatarana, que tudo e nada sabia ao mesmo tempo, mas cuja voz foi usada por João
Guimarães Rosa para a construção do grande romance brasileiro, sem dúvida, um
dos mais importantes da literatura universal no século passado.
Pois o livro de Jayro Schmidt, se não é
uma novidade, tem o mérito de confirmar o interesse interminável da crítica
pelo universo rosiano, oferecendo uma pesquisa esclarecedora sobre as múltiplas
visões do magnífico rapsodo dos encantamentos dos Gerais, perpassando uma a uma
as diferenciações da paisagem física e humana do sertão. A multiplicidade dos
nomes, plantas, bichos e lugares – assim como foi para João Guimarães Rosa –
constituiu para Jayro o arcabouço sobre o qual se municiou para escrever um
culto ensaio de interpretação lingüística e literária, descobrindo e apontando,
quem sabe, pela primeira vez, algumas facetas que outros críticos ainda não
tinham tido a ventura de prospectar no aparente emaranhado produzido pelo
genial mineiro nascido em Cordisburgo.
Inventor de palavras como nenhum outro
escritor da língua portuguesa, Rosa encontra tantos anos depois da publicação
do romance e de sua morte, um critico que à semelhança dos antecessores, sem
deslustrar o trabalho de nenhum deles ou deixar-se embair pela vaidade de
suplantá-los, aporta uma contribuição que, em primeiro lugar, a si própria se
exibe com a limpidez oportuna da sintaxe fluente no esforço de demarcar para
antigos, atuais e futuros leitores do Grande Sertão, as nuanças,
desvãos, quebradas e artimanhas duma prosa entrecortada pelo desvendamento de
um segredo que se insinua por toda a estória, mas que apenas se mostra por
inteiro nas últimas páginas.
Na oportuna observação de Olgária Matos,
ao escrever seu volumoso romance, João Guimarães Rosa o fez como se estivesse
vendo aquelas coisas pela primeira vez (ele que conhecia em pessoa os encantos
do sertão), valendo-se de neologismos, anglicismos, indianismos e galicismos,
“para tudo dizer em língua nova, embora inserindo o sertão, as palavras ‘bem de
casa’, em sua babel”.
Por sua vez, Leda Tenório da Motta, num
belo estudo sobre GSV nos informa que ao desenhar a trama tortuosa do dilema de
Riobaldo, que se debate entre o existe não existe do diabo e a questão de
contar ou não contar, Rosa acabou legando à literatura “um relato maciço, comparável
em estrutura aos romances de cavalaria”, no que está judiciosamente coberta de
razão.
De maneira apropriada Jayro deu a seu
ensaio um sugestivo título (No sertão das palavras), inegável em sua
referência explícita ao romance analisado, identificando na especulação o termo
angular no pensamento de Guimarães Rosa, que atribuiu a Riobaldo a função de
agir como portador das distorções gramaticais e fonéticas da escrita. O
jagunço, diz Jayro, é uma espécie de “aparato sensível a tudo que procede em torno
dele, isto é, nele, pois vai armazenando o que sabe e não sabe, mais o que não
sabe”.
Resultado final cuidadosamente
desentranhado de suas muitas leituras em literatura, filosofia e história, o
livro escrito por Jayro Schmidt sob o imenso dossel da inspiração criadora de
Guimarães Rosa, vai repontando as alusões e elisões do drama existencial
descrito pelo romancista. Tudo (ou quase tudo) gira em torno dos jagunços
Riobaldo e Reinaldo, cujo nome secreto era Diadorim, somente revelado ao
primeiro para uso em conversas particulares entre ambos, quando afastados dos
demais componentes do bando. O nome verdadeiro de Diadorim era Maria Deodorina
da Fé Bettancourt Marins, nascida a 11 de setembro da era de 1800 e tantos que,
no entanto, jamais revelou a alguém sua condição feminina a fim de vingar a
morte do pai – Joca Ramiro – assassinado por Hermógenes, jagunço rival de quem
se dizia ter partes com o Demo.
Filho desse mesmo sertão, Riobaldo não
sabia quem era seu pai (Diadorim, a mãe) e cedo tomou o rumo da jagunçagem sob
o comando de Medeiro Vaz, onde pouco depois voltou a cruzar com Reinaldo, o
menino que conhecera anos antes num atemorizante passeio de canoa. Sempre
próximos, lembra Jayro que “Diadorim é quem guiava Riobaldo no sertão dos
fatos, dos feitos e dos ditos, para um desfecho comovente: Deodorina
desencantada e estendida na nudez da morte”, ante o desespero daquele
personagem fáustico duma “história de amor incomparável, não em termos de
narrativa ou propriedade literária, mas pela originalidade do conceito: a
paixão entre Riobaldo e Diadorim. Riobaldo relata o encantamento desse amor e a
contrariedade de amar um homem, que, no final da narração, descobre que é uma
mulher perfeita, formosa e morta”.
João Guimarães Rosa, no intervalo das
letras e missões diplomáticas, apreciava o contato pessoal com tropeiros e
demais viajantes do imenso Norte. Era descendente de uma família de criadores
de gado radicada desde o século XVIII nas imediações das grutas calcárias de
Cordisburgo, onde veio a nascer. É famosa uma dessas participações em comitiva
de tropeiros pelas veredas de Minas, nos anos 50 do século passado, retratada
em ampla reportagem realizada pela revista O Cruzeiro, então editada no
Rio de Janeiro. Aí aprendia com os caboclos a discernir o pio das aves, o ruído
dos animais, o nome das plantas e dos córregos e rios que cruzavam o território
de Minas, Goiás, Bahia e Maranhão, enfim, o grande sertão.
A travessia guiada por esse sertão de
palavras é fascinante, na medida que a ousadia ficcional do autor, na corajosa
definição de Jayro Schmidt, “colocou Riobaldo, bruto-polido, ao lado dos
melhores personagens que se conhece, desde Shakespeare. Os melhores personagens
Harold Bloom definiu: são os que pensam bem demais como Hamlet, Darl, entre
outros. Guimarães Rosa reverenciava Dante, como qualquer poeta de envergadura.
E ‘mestre Guima’ foi mais tinhoso do que ele: Dante divinizou Beatriz na morte
e, Riobaldo, Diadorim em vida. Ele só não sabia que ele era ela”.
Lendo ou relendo Grande Sertão: Veredas,
a dificuldade será concordar com a exclamação recorrente de Guimarães Rosa:
“Nonada”. Não é nada. Ora, pois, pois: o romance de Rosa é tudo!
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