terça-feira, 30 de julho de 2013

COISAS ANIMAIS


Por Jayro Schmidt


Com o verão ventilado, o lagarto que costumava vir no canteiro ao lado da casa para papar os caramujos africanos, que infestam o Norte da Ilha, não deu as caras. E que cara tem, ancestral e atenta a qualquer barulho humano que o faz disparar abanando o rabo de um lado para o outro. Não por falta de boa visão, como o rinoceronte, visão apenas rente ao chão e, por isso, ergue a cabeça quando alerta porque ouviu sinais indesejáveis. Os gatos, que andam por aqui, curiosos aproximam-se como querendo cheirá-lo para reconhecer o quanto é diferente. Deu para ver que, nesses momentos, são os gatos que têm que correr, pois o bicho, como se fosse a armadura de Aquiles – que mostra ao inimigo a sua destinação – ataca destemido.
Os gatos, mais inteligentes do que a maioria das pessoas que conheço, logo descobriram que não podem mexer, mesmo inofensivamente, com tal armadura que protege sua carne que não deixa de ser saborosa uma vez preparada como deve. Saborosos são os caramujos para o lagarto: quebram com facilidade a casa que os protegem, comendo-os, sem exagero, com êxtase. Não tenho como confirmar, mas dizem que foi um francês iludido que trouxe os tais caramujos para criar e vender na Ilha como sendo uma iguaria.  
Tenho um vizinho cuja profissão é inventar o tempo disponível com um canário que não canta, uma bicicleta que geme e, dentre outras coisas parecidas, às vezes captura um lagarto, que diz que é “largato”, o que prova que o erro gramatical significa um parentesco verbal entre ele e os peludos caseiros que têm fama de ladrões. Capturar um lagarto é bem fácil, com isca fisgada em anzol. O largado, digo lagarto, aprecia lugares banhados e córregos, nos quais manda ver o que pode pegar se for viscoso, sapos e cobras e, se encontrar no caminho do faro, ninhadas de gatinhos que, crescidos, não dispensam seus filhotes que se parecem com jóias.
No preparo do bicho, segundo meu vizinho, tem que se tomar cuidado com veneno que pode estar na carne. Então o negócio, depois de governado, é deixar a carne de um dia para outro em sal e vinagre. Se ficar verde é porque está envenenado, que não lhe causa nenhum transtorno quando vivo. Disse ele também que o lagarto de papo amarelo tem veneno próprio, enquanto o de papo branco não.
Na primeira vez que o vizinho me ofereceu uma porção ensopada, vi que o que dizem da iguaria, que os nativos tupis-guaranis apreciavam, não é verdade. Por lembrar, suas costelas, as de frango ou mesmo de passarinho, as pessoas, apesar de não comê-la por nojo, dizem que tem gosto de galinha. Não, não tem esse gosto atrapalhado pelo cheiro das penas e, ocasionalmente, de piolhos, sendo eliminado com vinagre ou limão. O lagarto tem gosto semelhante ao de peixe sem escamas, como o bagre, por exemplo, que é tão famoso como os gatos, pois adora a essência da humanidade com a satisfação que tem o porco. Os gatos, isso todos sabem, são sempre os bichos mais asseados em qualquer lugar, ainda mais quando aparecem em um poema de Manuel Bandeira.
Acredita-se que estas características da fauna, e também da flora, têm propriedades clínicas e terapêuticas. A doutrina das assinaturas é bem conhecida desde o século 15 com o princípio “o semelhante cura o semelhante”, do que ninguém mais duvida. Está aí o começo da homeopatia apesar de todos os abalos que tem suportado o meio ambiente. Mesmo assim, a própria natureza dá um jeito de se regenerar.
Olhem o caranguejo, da família braquilógica. Isso sim é lógica de um saber superior! Preferem perder a garra, não a presa, porque se regenera por conta própria. E o sabor do caranguejo, para o meu paladar, é inigualável. Tão saboroso é que só pode ser terapêutico como dormir e sonhar que se está governando alguma nação como meu vizinho governa o lagarto – com respeito e eficácia.


DESENHOS RÁPIDOS

Desenhos de Onor Filomeno








Desenhos publicados no livro de Péricles Prade, Além dos Símbolos, Editora Letras Contemporâneas, 2003

sexta-feira, 26 de julho de 2013

A CULTURA E OS CÃES DE PAVLOV

Por Ivan Schmidt



O mercado editorial brasileiro acaba de lançar mais um livro do escritor peruano Mario Vargas Llosa, que em 2010 recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. Trata-se de A civilização do espetáculo (Objetiva, RJ, 2013), livro em que o festejado autor apresenta “uma radiografia de nosso tempo e da nossa cultura”, menção apropriadamente escolhida para subtítulo da obra traduzida por Ivone Benedetti.
Citei a provável tradução do livro para o português, o que ocorreu, além da expectativa que o mesmo abria para os ainda interessados em temas nunca superados como o debate da cultura. Pois a mais recente obra assinada pelo autor de Conversa na catedral, que os críticos consideram seu melhor romance chegou ao leitor brasileiro, quase simultaneamente com a realização da Flip 2013 (Festa Literária de Parati), que poucos conseguiram saber exatamente o que seria, ou o que pretendia alcançar, a julgar pelo que publicaram antes, durante e depois os cadernos culturais, que por sua vez também já perderam quase por inteiro essa característica primordial.
O evento midiático foi uma boa síntese do pensamento de Llosa, que recorreu ao enunciado do crítico George Steiner sobre a perda de vitalidade da cultura livresca, algo que não passou despercebido por T. S. Eliot, para justificar uma existência “cada vez mais à margem da cultura de hoje, que rompeu quase totalmente com as humanidades clássicas – hebraica, grega e latina – limitadas agora a alguns especialistas quase sempre inacessíveis em seus jargões herméticos e sua erudição asfixiante, quando não em teorias delirantes”.
Apoiado em Gilles Lipovestki e Jean Serroy, autores de A cultura-mundo. Resposta a uma sociedade desorientada (Anagrama, Barcelona, 2010), ainda nas páginas iniciais Llosa alveja a onipresente cultura de massa da qual participam sociedades e indivíduos dos cinco continentes, aproximando-os e igualando-os apesar das diferenças de idioma, crenças e tradições: “Em total oposição às vanguardas herméticas e elitistas, a cultura de massas quer oferecer ao público mais amplo possível novidades acessíveis que sirvam de entretenimento à maior quantidade possível de consumidores. Sua intenção é dar prazer, possibilitar evasão fácil e acessível para todos, sem necessidade de formação alguma, sem referentes culturais concretos e eruditos. O que as indústrias culturais inventam nada mais é que uma cultura transformada em artigos de consumo de massa”.
Assim, a cultura industrializada nasceu e se robusteceu com o predomínio da imagem e do som sobre a palavra, concedendo espaço dominante à tela. O cinema, a partir de Hollywood globalizou o filme, tais como o disco e a televisão. Llosa diz que esse processo foi acelerado pela universalização da internet.
Uma das perdas determinadas pela cultura-mundo, entretanto, em apreciação de Llosa que a muitos poderá chocar, é que a mesma “em vez de promover o indivíduo, imbeciliza-o, privando-o de lucidez e livre arbítrio, fazendo-o reagir à cultura dominante de maneira condicionada e gregária, como os cães de Pavlov à campainha que anuncia a comida”. O escritor também se referiu aos milhões de turistas que visitam o Louvre, a Acrópole ou os anfiteatros gregos da Sicília, mas discorda frontalmente de Lipovestki e Serroy que vêem no fato a confirmação de que “a cultura não perdeu o valor em nosso tempo e ainda goza de elevada legitimidade”.
Llosa contrapõe com certa impaciência ao argumentar que essas visitas a museus e monumentos históricos clássicos “não representam um interesse genuíno pela alta cultura (assim a chamam), mas mero esnobismo, visto que a visita a tais lugares faz parte da obrigação do perfeito turista pós-moderno”.
O pensador peruano que divide seu tempo entre Londres, Paris, Madri e Lima, lembra que em nossos dias o intelectual desapareceu dos debates públicos, pelo menos dos que importam, embora admita que “alguns ainda assinam manifestos, enviam cartas a jornais e se metem em polêmicas, mas nada disso tem repercussão séria na marcha da sociedade, cujos assuntos econômicos, institucionais e até mesmo culturais são decididos pelo poder político e administrativo e pelos chamados poderes de fato, entre os quais os intelectuais são ilustres ausentes”.
A constatação é válida para os acontecimentos havidos no Brasil nas últimas semanas. Pelo relato da imprensa que ainda hoje tem dificuldade para explicar a verdadeira natureza dos protestos, também foi impossível verificar se algum intelectual de prestígio foi chamado a contribuir de alguma forma, ou pelo menos, conversar com os líderes das manifestações. A meu ver, porém, o pior dos exemplos foi dado pelo próprio governo que até esse momento (se o fez foi em segredo) convidou sociólogos, psicólogos, antropólogos e cientistas políticos para ouvir o que têm a dizer sobre o fenômeno.
Vargas Llosa confessa real nostalgia dos tempos de juventude e, nesse aspecto conta com milhões de parceiros, quando Bertrand Russel (Inglaterra), Sartre e Camus (França), Moravia e Vittorini (Itália), Günter Grass e Enzensberger (Alemanha), Ortega y Gasset e Miguel de Unamuno (Espanha), assim como intelectuais de todas as democracias europeias, sempre foram os primeiros a tomar posição sobre acontecimentos políticos ou sociais.
No Brasil tivemos também expoentes da cepa de Rui, Alberto Torres, Augusto Frederico Schmidt, Barbosa Lima Sobrinho, Afonso Arinos, Alceu de Amoroso Lima, Ariano Suassuna, Sobral Pinto e Raymundo Faoro, entre outros, cuja voz se elevava naturalmente em momentos críticos da vida nacional.
Hoje o panorama traçado para a política pela civilização do espetáculo é ruinoso. Llosa constatou que “infelizmente a influência exercida pela cultura sobre a política, em vez de exigir que esta mantenha certos padrões de excelência e integridade, contribui para deteriorá-la moral e civicamente, estimulando o que possa haver nela de pior como, por exemplo, a mera farsa”. E conclui: “Já vimos que, no compasso da cultura reinante, a política foi substituindo cada vez mais ideias e ideais, debate intelectual e programas, por mera publicidade e aparência. Consequentemente, a popularidade e o sucesso são conquistados não tanto pela inteligência e pela probidade quanto pela demagogia e pelo talento histriônico”.
Qualquer semelhança com um país que o leitor conhece (não) é mera coincidência.



SALVE EINSTEIN!

Da Redação (J.S.)




Poucos judeus tiveram a sorte de Albert Einstein, 1879-1955. Quando Hitler chegou ao poder em 1933, o físico, que mudou a visão do universo clássico, visitava os Estados Unidos, e por lá ficou, obtendo a cidadania em 1940.

As constatações físicas de Einstein são conhecidíssimas, nem tanto o que pensava sobre o mundo em que vivemos, embora sem a sua lucidez metaforizada em seus cabelos eletromagnéticos, apontados em todas as direções do infinito como se ele fosse um personagem que saiu do pincel de El Greco.

Einstein reconheceu que a ciência não pode se desvencilhar de um axioma: a percepção não é suficiente para fundar o conhecimento científico. De qualquer maneira, ele não relegou a ideia de que certas obras de arte dizem o que nenhuma fórmula científica pode dizer. Einstein, no mínimo, não separou intuição de intelecção, concluindo que os conhecimentos se equivalem, cada qual com suas ferramentas. Assim ele pode afirmar que a ciência não independe do absoluto, porém pensado no campo da relatividade, sendo categórico nessa arquitetura que animou predecessores como Kepler e Newton: “O espírito científico, fortemente armado com seu método, não existe sem a religiosidade cósmica”. Nessa visão, os deuses antropomórficos não significam nada: tal mística “não tem dogmas nem Deus concebido à imagem do homem, portanto nenhuma Igreja ensina a religião cósmica”.

A força afetiva e conceptiva de Einstein estava na intuição, capaz de atingir culminâncias científicas que não desconheciam as volições humanas onde, por fatores civilizatórios, se perdeu o contato com a animalidade terna: “Minha condição humana me fascina. Conheço o limite de minha existência e ignoro por que estou nesta terra, mas às vezes o pressinto”.


quarta-feira, 17 de julho de 2013

TIPOS IMAGINADOS

Gravuras de Terezinha Dias





PALAVRAS-LEMES

Da redação


orientam o que se ignora ou reorientam o que escapou da memória, cujos sentidos dependem de cada um




Abstração
existênciarelaçãoordemnúmero
serafinidadeprecedermedida
tempomudançacausa
duraçãodiferençaorigem
Espaço
dimensãoformamoção
extensãoimagemmobilidade
Matéria
anorgânicaorgânica
inanimaçãoanimação
Cognição
entendimentoraciocíniopensamento
apreensãodeduçãoprevisão
comunicação
meio
Volição
vontadeprospecçãocontradiçãoação
decisãointençãooposiçãoexecução
Afeição
simpatiaempatiamoral
identidadeprojeçãoética

(De Carlos Spitzer)



(De Roman Jakóbson)



PINTOR DESCONCERTANTE

Da redação




Fotograma de O processo, filme de Orson Welles, baseado na obra de Franz Kafka, na qual o pintor Titorelli, retratista dos juízes, é procurado por Joseph K. (Anthony Perkins), na tentativa de ter acesso ao processo. Procura-o e, para agradá-lo, compra algumas obras que o pintor vai tirando debaixo da cama, o que o deixa atônito, pois são paisagens totalmente iguais em todas as telas. (J.S.)


OSMOSE

Pintura de Lia Krucken





Nas vertentes do Abstracionismo encontra-se a Abstração Lírica, que condiciona o gesto efusivo, de libertação expressiva, de espontaneidade intuitiva. Trata-se de um panteísmo lírico, cósmico, em cuja manifestação o artista está sob o efeito de uma dupla osmose: integra a ele o universo enquanto nele se dissolve.


segunda-feira, 8 de julho de 2013

PAUVOLIDIANAS

Poema sem título de Elaine Pauvolid





Silencio mar morto
salgando carnes em rochas cobertas de sol.
Sigo rastros de presságios,
recolho-me, concha
deitando-me maré
até acordar silêncio.




Poema extraído de O silêncio como contorno da mão, Editora Multifoco, 2011


SORROW

Da Redação


Durante o tempo que Vincent van Gogh viveu em Haia, de 1881 a 1883, ele abrigou uma mulher que vagava pelas ruas, alcoólatra, com varíola e grávida, Classina Maria Hoornik, conhecida como Sien. O pintor foi reprovado pelos familiares através do irmão Théo, que vivia em Paris. A resposta de van Gogh, por carta, não poderia ser outra:

Pois bem, senhores, vou contá-lo aos senhores que dão tanto valor às formas e à civilização, e isto é claro sob a condição de que se fale a sério: o que é mais civilizado, mais delicado, mais viril, abandonar uma mulher ou apiedar-se de uma desprezada?

Bem se vê que o humanismo de van Gogh estava longe de qualquer retórica.

Van Gogh levou Sien para seu ateliê, dando a ela condições de higiene, alimentação e fortificantes, como também, posteriormente, a um instituto para mulheres grávidas, em Leyde, pois o seu desconforto físico aumentou.

Não era de se espantar que ela estivesse doentia, a criança estava em má posição, ela teve que sofrer uma operação, tiveram que virar a criança especialmente com a ajuda de fórceps. Entretanto, há grandes possibilidades de que ela escape desta. Ela deve dar à luz em junho.

Foi o que aconteceu. E van Gogh, durante este período, tomou Sien como modelo, deixando para a história do humanismo em arte o mais pungente ícone sob o título sorrow, tristeza, sofrimento, solidão. (J.S.)


segunda-feira, 1 de julho de 2013

Das Cartas de Van Gogh a Émile Bernard

Por Jayro Schmidt



As cartas de Vincent van Gogh ao francês Émile Bernard são as que mais especificam a sua visão artística.
Van Gogh identificava-se com a pintura de Bernard, não com a sua tendência mística que acabou predominando com ênfase, como não poderia deixar de ser, no simbólico.
Van Gogh teve sincera admiração pelo jovem amigo, incentivando-o o tempo todo, mas também o criticando com rigor implacável. Na leitura que fez de alguns de seus temas religiosos, chamou-o de afetado e falso. Van Gogh pede a Bernard que volte “a ser ele mesmo”, prevenindo-o que a técnica muitas vezes pode se transformar em truque, artifício, culinária.
O “ele mesmo” é esclarecedor na própria obra de van Gogh, feita de afetos e concepções inseparáveis, com vivacidade mimética e anímica que encontrava nos pintores japoneses, explicando a Bernard o não se “afastar do possível e do verdadeiro”, do que “realmente existe”, evitando assim, para não contrariar sua vontade, o “ideal”. Além de situar o verdadeiro como sendo algo que sobrepujava questões morais, a vontade do pintor teve a mesma amplitude como teve na ficção de Dostoievski e na filosofia de Nietzsche.

Na verdade, acima de tudo, o grande objetivo é adicionar um novo vigor à realidade, sem qualquer plano preconcebido nem preconceitos parisienses.

Van Gogh esteve em Paris no auge de uma revolução que inseriu a arte na especialização técnica, na tecnologia pictórica equiparada à tecnologia construtiva dos engenheiros do século 19, deixando-se contagiar, mas desconfiando de normas, contrapondo ao preconcebido ânimos pessoais imprevisíveis e mutantes conforme as circunstâncias vividas. A ele interessava as novidades técnicas, mais ainda criar a si mesmo como um original, qualidade que sem reservas aproximava ética de expressão artística. Ele passou por dilemas religiosos sem confundir religião com arte, separando-as no momento oportuno. Poderia passar sem tantas coisas, sem promessas e outros paliativos. Podia se privar de tudo, menos da “potência de pintar”.
O vigor a que se referiu, van Gogh acumulou em pinturas com excesso de vida, transbordamento de realidade, pois era nisso que pensava: criar realidade e não outra realidade, idealizada, que via em Bernard e em outros artistas. É neste contexto que van Gogh separou religião e sentimento religioso da arte.
O realismo foi um antídoto aos arroubos românticos, e, para não deixar dúvidas acerca da relação natureza e inventividade, van Gogh considerava a imaginação como faculdade a ser desenvolvida, “a única que nos pode levar à criação de uma natureza mais exuberante”, tendo sob vigilância os excessos para que a percepção fosse reflexiva, mais prolongada sobre a realidade, sempre em transformação, relâmpago sob os olhos. Na distensão do pensar o mundo nas imagens fugitivas, somente poderia caber a técnica rápida, desfixada, por assim dizer conformada a oscilações e perplexidades. O esquemático não fazia parte de suas expectativas, preparado que estava para dar forma ao que ainda não tinha forma, entregue ao caos das emoções.

Não tenho qualquer sistema para dar pinceladas em meus quadros. Ataco a tela com toques irregulares do pincel e deixo como está, não modifico nada.

Natureza e arte distributivas, fazendo com que o atributivo fosse o sentido do mundo no sujeito da linguagem. Talvez por isso Heidegger, em A origem da obra de arte, somente tenha pensado van Gogh e, de passagem, mencionado Dürer. Natureza e verdade, relação imprescindível para van Gogh, mas algo além, arte e história, tendo como referência e estudo as obras de Rembrandt e de Delacroix.
Não era a primeira vez que van Gogh recorria a Rembrandt, desta vez porque Bernard estava pintando temas religiosos com o sacrifício de soluções pictóricas ao privilegiar o narrativo ou simplesmente o descritivo. O discernimento nas escolhas dos motivos, não importam quais, religiosos ou não, estava imediatamente vinculado a tais soluções, isto é, às qualidades intrínsecas da pintura já com todo um vocabulário visual que não confundia literário com plasticidade.

Acontece que existe uma grande distância entre os métodos de Delacroix e de Rembrandt e aqueles empregados através de todo o resto da pintura religiosa.

Bernard não havia compreendido a pintura de Rembrandt, que van Gogh chama de “magia metafísica”. Pintura do visível mais visível, em cuja superfície irrompe o invisível, qualidade inominável que transferia a representação do sentimento trágico da vida para o ato mesmo de pintar. Rembrandt pintando a “natureza por meio de um espelho”, pintando-se “por detrás desse velho, que recorda a imagem de si mesmo” com todas as imagens do que foi e será.
Nem Baudelaire havia assimilado Rembrandt, comentário suplementar ao que van Gogh estava esclarecendo a Bernard, que havia enviado versos do poeta.

Rembrandt, triste hospital de murmúrios,
Decorado somente com um grande crucifixo,
Onde a prece chorosa se exala da imundície
Bruscamente cortada por um raio de inverno.

Van Gogh diz que quando o poeta escreveu estes versos pouco sabia sobre Rembrandt. Que mordesse a língua, então: “suas palavras têm efeito, mas são infinitamente rasas”.
Convicto apreciador de pintores de alegorias, Meryon, e de costumes, Constantin Guys, Baudelaire não poderia ter a devida apreensão de Rembrandt, ainda que tenha visto Delacroix e Courbet de maneira relativamente sólida. É que ele achava que as barricadas eram “pedras mágicas”. Conforme Benjamin, “mágicas” porque ele desconhecia as mãos que as construíram.
No período de Arles, e em carta a Théo, reconhece-se que van Gogh estava atrás das barricadas, que admirava o carteiro Roulin por ser um velho republicano, retratando-o com a mesma determinação com que pintou a natureza em outras obras. “Terrível lucidez”, diz ele. E assim deixava de ter consciência de si mesmo e a pintura ia “se criando a si mesma, como se fosse em um sonho”.
Transportado no ato de pintar, estar no lugar da pintura significava ter, por sinestesia, o corpo como parte do mundo em linguagem que dava respostas que não se desvinculavam das perguntas. Em carta a Gauguin, internado em Saint-Rémy, van Gogh voltou a mencionar a atmosfera do sono, do comportamento sonâmbulo semelhante à hipnose, conhecido no século 19 como sono lúcido, utilizado como método que deveria, com as palavras, trazer à superfície o que havia ocorrido na superfície. Vez ou outra, nas cartas não somente a Bernard, van Gogh transmite que se sentia “exaurido pelo trabalho”, embora escrever à noite o repousasse.


Leitor-Escritor (Alberto Manguel)

Da Redação




O argentino cosmopolita Alberto Manguel, de 1964 a 1968, todas as semanas lia em voz alta para Jorge Luis Borges, dando sua versão sobre esse privilégio em seu livro No bosque do espelho, publicado pela Companhia das Letras, que também publicou Dicionário de lugares imaginários, Os livros e os dias e A cidade das palavras. Nota-se que Manguel, por esses títulos, é um leitor incomparável, fazendo do livro a fonte de suas ficções que não arredam o pé da não-ficção. Estima-se que tenha aproximadamente 50 mil exemplares em sua biblioteca em Mondion, um vilarejo nos arredores de Poiters, França. Pode-se dizer que esta biblioteca é fantástica, porém não pela quantidade de livros.


CAMINHOS DE VALDA (Documentário)

Documentário de Marlon Aseff


link do vídeo: http://vimeo.com/64659765

"Valda pintou a ilha e seus costumes, as comunidades, o folclore. O documentário Caminhos de Valda recupera a atualidade da obra da pintora Valda Costa, que viveu em Florianópolis e conviveu com uma inovadora geração de artistas nas efervescentes décadas de 70 e 80 na capital catarinense. O filme traz depoimentos de artistas como Rodrigo de Haro, Janga, Pedro Heil, Jayro Schmidt, Valdir Agostinho, além de familiares, marchands e amigos que conviveram com a pintora até o ano de sua morte, em 1993."


NATUREZA ABSTRATA

Xilogravura de Helena Maria Werner