sexta-feira, 26 de julho de 2013

A CULTURA E OS CÃES DE PAVLOV

Por Ivan Schmidt



O mercado editorial brasileiro acaba de lançar mais um livro do escritor peruano Mario Vargas Llosa, que em 2010 recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. Trata-se de A civilização do espetáculo (Objetiva, RJ, 2013), livro em que o festejado autor apresenta “uma radiografia de nosso tempo e da nossa cultura”, menção apropriadamente escolhida para subtítulo da obra traduzida por Ivone Benedetti.
Citei a provável tradução do livro para o português, o que ocorreu, além da expectativa que o mesmo abria para os ainda interessados em temas nunca superados como o debate da cultura. Pois a mais recente obra assinada pelo autor de Conversa na catedral, que os críticos consideram seu melhor romance chegou ao leitor brasileiro, quase simultaneamente com a realização da Flip 2013 (Festa Literária de Parati), que poucos conseguiram saber exatamente o que seria, ou o que pretendia alcançar, a julgar pelo que publicaram antes, durante e depois os cadernos culturais, que por sua vez também já perderam quase por inteiro essa característica primordial.
O evento midiático foi uma boa síntese do pensamento de Llosa, que recorreu ao enunciado do crítico George Steiner sobre a perda de vitalidade da cultura livresca, algo que não passou despercebido por T. S. Eliot, para justificar uma existência “cada vez mais à margem da cultura de hoje, que rompeu quase totalmente com as humanidades clássicas – hebraica, grega e latina – limitadas agora a alguns especialistas quase sempre inacessíveis em seus jargões herméticos e sua erudição asfixiante, quando não em teorias delirantes”.
Apoiado em Gilles Lipovestki e Jean Serroy, autores de A cultura-mundo. Resposta a uma sociedade desorientada (Anagrama, Barcelona, 2010), ainda nas páginas iniciais Llosa alveja a onipresente cultura de massa da qual participam sociedades e indivíduos dos cinco continentes, aproximando-os e igualando-os apesar das diferenças de idioma, crenças e tradições: “Em total oposição às vanguardas herméticas e elitistas, a cultura de massas quer oferecer ao público mais amplo possível novidades acessíveis que sirvam de entretenimento à maior quantidade possível de consumidores. Sua intenção é dar prazer, possibilitar evasão fácil e acessível para todos, sem necessidade de formação alguma, sem referentes culturais concretos e eruditos. O que as indústrias culturais inventam nada mais é que uma cultura transformada em artigos de consumo de massa”.
Assim, a cultura industrializada nasceu e se robusteceu com o predomínio da imagem e do som sobre a palavra, concedendo espaço dominante à tela. O cinema, a partir de Hollywood globalizou o filme, tais como o disco e a televisão. Llosa diz que esse processo foi acelerado pela universalização da internet.
Uma das perdas determinadas pela cultura-mundo, entretanto, em apreciação de Llosa que a muitos poderá chocar, é que a mesma “em vez de promover o indivíduo, imbeciliza-o, privando-o de lucidez e livre arbítrio, fazendo-o reagir à cultura dominante de maneira condicionada e gregária, como os cães de Pavlov à campainha que anuncia a comida”. O escritor também se referiu aos milhões de turistas que visitam o Louvre, a Acrópole ou os anfiteatros gregos da Sicília, mas discorda frontalmente de Lipovestki e Serroy que vêem no fato a confirmação de que “a cultura não perdeu o valor em nosso tempo e ainda goza de elevada legitimidade”.
Llosa contrapõe com certa impaciência ao argumentar que essas visitas a museus e monumentos históricos clássicos “não representam um interesse genuíno pela alta cultura (assim a chamam), mas mero esnobismo, visto que a visita a tais lugares faz parte da obrigação do perfeito turista pós-moderno”.
O pensador peruano que divide seu tempo entre Londres, Paris, Madri e Lima, lembra que em nossos dias o intelectual desapareceu dos debates públicos, pelo menos dos que importam, embora admita que “alguns ainda assinam manifestos, enviam cartas a jornais e se metem em polêmicas, mas nada disso tem repercussão séria na marcha da sociedade, cujos assuntos econômicos, institucionais e até mesmo culturais são decididos pelo poder político e administrativo e pelos chamados poderes de fato, entre os quais os intelectuais são ilustres ausentes”.
A constatação é válida para os acontecimentos havidos no Brasil nas últimas semanas. Pelo relato da imprensa que ainda hoje tem dificuldade para explicar a verdadeira natureza dos protestos, também foi impossível verificar se algum intelectual de prestígio foi chamado a contribuir de alguma forma, ou pelo menos, conversar com os líderes das manifestações. A meu ver, porém, o pior dos exemplos foi dado pelo próprio governo que até esse momento (se o fez foi em segredo) convidou sociólogos, psicólogos, antropólogos e cientistas políticos para ouvir o que têm a dizer sobre o fenômeno.
Vargas Llosa confessa real nostalgia dos tempos de juventude e, nesse aspecto conta com milhões de parceiros, quando Bertrand Russel (Inglaterra), Sartre e Camus (França), Moravia e Vittorini (Itália), Günter Grass e Enzensberger (Alemanha), Ortega y Gasset e Miguel de Unamuno (Espanha), assim como intelectuais de todas as democracias europeias, sempre foram os primeiros a tomar posição sobre acontecimentos políticos ou sociais.
No Brasil tivemos também expoentes da cepa de Rui, Alberto Torres, Augusto Frederico Schmidt, Barbosa Lima Sobrinho, Afonso Arinos, Alceu de Amoroso Lima, Ariano Suassuna, Sobral Pinto e Raymundo Faoro, entre outros, cuja voz se elevava naturalmente em momentos críticos da vida nacional.
Hoje o panorama traçado para a política pela civilização do espetáculo é ruinoso. Llosa constatou que “infelizmente a influência exercida pela cultura sobre a política, em vez de exigir que esta mantenha certos padrões de excelência e integridade, contribui para deteriorá-la moral e civicamente, estimulando o que possa haver nela de pior como, por exemplo, a mera farsa”. E conclui: “Já vimos que, no compasso da cultura reinante, a política foi substituindo cada vez mais ideias e ideais, debate intelectual e programas, por mera publicidade e aparência. Consequentemente, a popularidade e o sucesso são conquistados não tanto pela inteligência e pela probidade quanto pela demagogia e pelo talento histriônico”.
Qualquer semelhança com um país que o leitor conhece (não) é mera coincidência.



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