segunda-feira, 1 de julho de 2013

Das Cartas de Van Gogh a Émile Bernard

Por Jayro Schmidt



As cartas de Vincent van Gogh ao francês Émile Bernard são as que mais especificam a sua visão artística.
Van Gogh identificava-se com a pintura de Bernard, não com a sua tendência mística que acabou predominando com ênfase, como não poderia deixar de ser, no simbólico.
Van Gogh teve sincera admiração pelo jovem amigo, incentivando-o o tempo todo, mas também o criticando com rigor implacável. Na leitura que fez de alguns de seus temas religiosos, chamou-o de afetado e falso. Van Gogh pede a Bernard que volte “a ser ele mesmo”, prevenindo-o que a técnica muitas vezes pode se transformar em truque, artifício, culinária.
O “ele mesmo” é esclarecedor na própria obra de van Gogh, feita de afetos e concepções inseparáveis, com vivacidade mimética e anímica que encontrava nos pintores japoneses, explicando a Bernard o não se “afastar do possível e do verdadeiro”, do que “realmente existe”, evitando assim, para não contrariar sua vontade, o “ideal”. Além de situar o verdadeiro como sendo algo que sobrepujava questões morais, a vontade do pintor teve a mesma amplitude como teve na ficção de Dostoievski e na filosofia de Nietzsche.

Na verdade, acima de tudo, o grande objetivo é adicionar um novo vigor à realidade, sem qualquer plano preconcebido nem preconceitos parisienses.

Van Gogh esteve em Paris no auge de uma revolução que inseriu a arte na especialização técnica, na tecnologia pictórica equiparada à tecnologia construtiva dos engenheiros do século 19, deixando-se contagiar, mas desconfiando de normas, contrapondo ao preconcebido ânimos pessoais imprevisíveis e mutantes conforme as circunstâncias vividas. A ele interessava as novidades técnicas, mais ainda criar a si mesmo como um original, qualidade que sem reservas aproximava ética de expressão artística. Ele passou por dilemas religiosos sem confundir religião com arte, separando-as no momento oportuno. Poderia passar sem tantas coisas, sem promessas e outros paliativos. Podia se privar de tudo, menos da “potência de pintar”.
O vigor a que se referiu, van Gogh acumulou em pinturas com excesso de vida, transbordamento de realidade, pois era nisso que pensava: criar realidade e não outra realidade, idealizada, que via em Bernard e em outros artistas. É neste contexto que van Gogh separou religião e sentimento religioso da arte.
O realismo foi um antídoto aos arroubos românticos, e, para não deixar dúvidas acerca da relação natureza e inventividade, van Gogh considerava a imaginação como faculdade a ser desenvolvida, “a única que nos pode levar à criação de uma natureza mais exuberante”, tendo sob vigilância os excessos para que a percepção fosse reflexiva, mais prolongada sobre a realidade, sempre em transformação, relâmpago sob os olhos. Na distensão do pensar o mundo nas imagens fugitivas, somente poderia caber a técnica rápida, desfixada, por assim dizer conformada a oscilações e perplexidades. O esquemático não fazia parte de suas expectativas, preparado que estava para dar forma ao que ainda não tinha forma, entregue ao caos das emoções.

Não tenho qualquer sistema para dar pinceladas em meus quadros. Ataco a tela com toques irregulares do pincel e deixo como está, não modifico nada.

Natureza e arte distributivas, fazendo com que o atributivo fosse o sentido do mundo no sujeito da linguagem. Talvez por isso Heidegger, em A origem da obra de arte, somente tenha pensado van Gogh e, de passagem, mencionado Dürer. Natureza e verdade, relação imprescindível para van Gogh, mas algo além, arte e história, tendo como referência e estudo as obras de Rembrandt e de Delacroix.
Não era a primeira vez que van Gogh recorria a Rembrandt, desta vez porque Bernard estava pintando temas religiosos com o sacrifício de soluções pictóricas ao privilegiar o narrativo ou simplesmente o descritivo. O discernimento nas escolhas dos motivos, não importam quais, religiosos ou não, estava imediatamente vinculado a tais soluções, isto é, às qualidades intrínsecas da pintura já com todo um vocabulário visual que não confundia literário com plasticidade.

Acontece que existe uma grande distância entre os métodos de Delacroix e de Rembrandt e aqueles empregados através de todo o resto da pintura religiosa.

Bernard não havia compreendido a pintura de Rembrandt, que van Gogh chama de “magia metafísica”. Pintura do visível mais visível, em cuja superfície irrompe o invisível, qualidade inominável que transferia a representação do sentimento trágico da vida para o ato mesmo de pintar. Rembrandt pintando a “natureza por meio de um espelho”, pintando-se “por detrás desse velho, que recorda a imagem de si mesmo” com todas as imagens do que foi e será.
Nem Baudelaire havia assimilado Rembrandt, comentário suplementar ao que van Gogh estava esclarecendo a Bernard, que havia enviado versos do poeta.

Rembrandt, triste hospital de murmúrios,
Decorado somente com um grande crucifixo,
Onde a prece chorosa se exala da imundície
Bruscamente cortada por um raio de inverno.

Van Gogh diz que quando o poeta escreveu estes versos pouco sabia sobre Rembrandt. Que mordesse a língua, então: “suas palavras têm efeito, mas são infinitamente rasas”.
Convicto apreciador de pintores de alegorias, Meryon, e de costumes, Constantin Guys, Baudelaire não poderia ter a devida apreensão de Rembrandt, ainda que tenha visto Delacroix e Courbet de maneira relativamente sólida. É que ele achava que as barricadas eram “pedras mágicas”. Conforme Benjamin, “mágicas” porque ele desconhecia as mãos que as construíram.
No período de Arles, e em carta a Théo, reconhece-se que van Gogh estava atrás das barricadas, que admirava o carteiro Roulin por ser um velho republicano, retratando-o com a mesma determinação com que pintou a natureza em outras obras. “Terrível lucidez”, diz ele. E assim deixava de ter consciência de si mesmo e a pintura ia “se criando a si mesma, como se fosse em um sonho”.
Transportado no ato de pintar, estar no lugar da pintura significava ter, por sinestesia, o corpo como parte do mundo em linguagem que dava respostas que não se desvinculavam das perguntas. Em carta a Gauguin, internado em Saint-Rémy, van Gogh voltou a mencionar a atmosfera do sono, do comportamento sonâmbulo semelhante à hipnose, conhecido no século 19 como sono lúcido, utilizado como método que deveria, com as palavras, trazer à superfície o que havia ocorrido na superfície. Vez ou outra, nas cartas não somente a Bernard, van Gogh transmite que se sentia “exaurido pelo trabalho”, embora escrever à noite o repousasse.


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