Por Jayro Schmidt
As cartas de Vincent van Gogh ao francês Émile Bernard
são as que mais especificam a sua visão artística.
Van Gogh identificava-se com a pintura de Bernard, não
com a sua tendência mística que acabou predominando com ênfase, como não
poderia deixar de ser, no simbólico.
Van Gogh teve sincera admiração pelo jovem amigo,
incentivando-o o tempo todo, mas também o criticando com rigor implacável. Na
leitura que fez de alguns de seus temas religiosos, chamou-o de afetado e
falso. Van Gogh pede a Bernard que volte “a ser ele mesmo”, prevenindo-o que a
técnica muitas vezes pode se transformar em truque, artifício, culinária.
O “ele mesmo” é esclarecedor na própria obra de van
Gogh, feita de afetos e concepções inseparáveis, com vivacidade mimética e anímica
que encontrava nos pintores japoneses, explicando a Bernard o não se “afastar
do possível e do verdadeiro”, do que “realmente existe”, evitando assim, para
não contrariar sua vontade, o “ideal”. Além de situar o verdadeiro como sendo
algo que sobrepujava questões morais, a vontade do pintor teve a mesma
amplitude como teve na ficção de Dostoievski e na filosofia de Nietzsche.
Na verdade,
acima de tudo, o grande objetivo é adicionar um novo vigor à realidade, sem
qualquer plano preconcebido nem preconceitos parisienses.
Van Gogh esteve em Paris no auge de uma revolução que
inseriu a arte na especialização técnica, na tecnologia pictórica equiparada à
tecnologia construtiva dos engenheiros do século 19, deixando-se contagiar, mas
desconfiando de normas, contrapondo ao preconcebido ânimos pessoais
imprevisíveis e mutantes conforme as circunstâncias vividas. A ele interessava
as novidades técnicas, mais ainda criar a si mesmo como um original, qualidade
que sem reservas aproximava ética de expressão artística. Ele passou por
dilemas religiosos sem confundir religião com arte, separando-as no momento
oportuno. Poderia passar sem tantas coisas, sem promessas e outros paliativos.
Podia se privar de tudo, menos da “potência de pintar”.
O vigor a que se referiu, van Gogh acumulou em
pinturas com excesso de vida, transbordamento de realidade, pois era nisso que
pensava: criar realidade e não outra realidade, idealizada, que via em Bernard
e em outros artistas. É neste contexto que van Gogh separou religião e
sentimento religioso da arte.
O realismo foi um antídoto aos arroubos românticos, e,
para não deixar dúvidas acerca da relação natureza e inventividade, van Gogh considerava
a imaginação como faculdade a ser desenvolvida, “a única que nos pode levar à
criação de uma natureza mais exuberante”, tendo sob vigilância os excessos para
que a percepção fosse reflexiva, mais prolongada sobre a realidade, sempre em
transformação, relâmpago sob os olhos. Na distensão do pensar o mundo nas
imagens fugitivas, somente poderia caber a técnica rápida, desfixada, por assim
dizer conformada a oscilações e perplexidades. O esquemático não fazia parte de
suas expectativas, preparado que estava para dar forma ao que ainda não tinha
forma, entregue ao caos das emoções.
Não tenho
qualquer sistema para dar pinceladas em meus quadros. Ataco a tela com toques
irregulares do pincel e deixo como está, não modifico nada.
Natureza e arte distributivas, fazendo com que o
atributivo fosse o sentido do mundo no sujeito da linguagem. Talvez por isso
Heidegger, em A origem da obra de arte,
somente tenha pensado van Gogh e, de passagem, mencionado Dürer. Natureza e
verdade, relação imprescindível para van Gogh, mas algo além, arte e história,
tendo como referência e estudo as obras de Rembrandt e de Delacroix.
Não era a primeira vez que van Gogh recorria a
Rembrandt, desta vez porque Bernard estava pintando temas religiosos com o
sacrifício de soluções pictóricas ao privilegiar o narrativo ou simplesmente o
descritivo. O discernimento nas escolhas dos motivos, não importam quais,
religiosos ou não, estava imediatamente vinculado a tais soluções, isto é, às
qualidades intrínsecas da pintura já com todo um vocabulário visual que não
confundia literário com plasticidade.
Acontece que
existe uma grande distância entre os métodos de Delacroix e de Rembrandt e
aqueles empregados através de todo o resto da pintura religiosa.
Bernard não havia compreendido a pintura de Rembrandt,
que van Gogh chama de “magia metafísica”. Pintura do visível mais visível, em
cuja superfície irrompe o invisível, qualidade inominável que transferia a
representação do sentimento trágico da vida para o ato mesmo de pintar. Rembrandt
pintando a “natureza por meio de um espelho”, pintando-se “por detrás desse
velho, que recorda a imagem de si mesmo” com todas as imagens do que foi e
será.
Nem Baudelaire havia assimilado Rembrandt, comentário
suplementar ao que van Gogh estava esclarecendo a Bernard, que havia enviado
versos do poeta.
Rembrandt,
triste hospital de murmúrios,
Decorado
somente com um grande crucifixo,
Onde a prece
chorosa se exala da imundície
Bruscamente
cortada por um raio de inverno.
Van Gogh diz que quando o poeta escreveu estes versos
pouco sabia sobre Rembrandt. Que mordesse a língua, então: “suas palavras têm
efeito, mas são infinitamente rasas”.
Convicto apreciador de pintores de alegorias, Meryon,
e de costumes, Constantin Guys, Baudelaire não poderia ter a devida apreensão
de Rembrandt, ainda que tenha visto Delacroix e Courbet de maneira relativamente
sólida. É que ele achava que as barricadas eram “pedras mágicas”. Conforme
Benjamin, “mágicas” porque ele desconhecia as mãos que as construíram.
No período de Arles, e em carta a Théo, reconhece-se
que van Gogh estava atrás das barricadas, que admirava o carteiro Roulin por
ser um velho republicano, retratando-o com a mesma determinação com que pintou
a natureza em outras obras. “Terrível lucidez”, diz ele. E assim deixava de ter
consciência de si mesmo e a pintura ia “se criando a si mesma, como se fosse em
um sonho”.
Transportado no ato de pintar, estar no lugar da
pintura significava ter, por sinestesia, o corpo como parte do mundo em
linguagem que dava respostas que não se desvinculavam das perguntas. Em carta a
Gauguin, internado em Saint-Rémy, van Gogh voltou a mencionar a atmosfera do
sono, do comportamento sonâmbulo semelhante à hipnose, conhecido no século 19
como sono lúcido, utilizado como método que deveria, com as palavras, trazer à
superfície o que havia ocorrido na superfície. Vez ou outra, nas cartas não
somente a Bernard, van Gogh transmite que se sentia “exaurido pelo trabalho”,
embora escrever à noite o repousasse.
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