quinta-feira, 22 de agosto de 2013

RITUAL

Por Jayro Schmidt



Para Vinícius Alves, que sabe o que estou dizendo


Numa crônica de outubro de 1968, Clarice Lispector louva o café, o bom café que tomava antes de iniciar um texto, algo indispensável nas ocasiões que se vai ter que encarar uma situação difícil.
Escrever, por mais prazer que se sinta, é difícil. Às vezes é tão difícil que só o café não basta como em velórios de uma pessoa querida.
Um velório é bem mais difícil para quem fica que o melhor é tomar uma xícara de café com conhaque, uma mistura perfeita que os etílicos recusam com veemência, e com boas razões: é como deturpar uísque com guaraná, mesmo que o aficcionado, e já alto, não consiga mais emborcar o famoso caubói, que costuma fazer o cavalo disparar.
Então o gelo resolve, mas não esfria o bebedor que fica feliz como um sapo em dia de chuva ao ouvir o tilintar dos cubinhos que, com a ponta do dedo, faz dar voltas no copo enquanto sua cabeça também insiste em fazer o mesmo, o que não chega ser perigoso se o cara está no seu canto.
O café, de qualquer maneira, pode amenizar o porre, isso se a porrada não tiver sido grande a ponto de deitar o sujeito. A um bêbado deitado não se pode fazer nada a não ser que esteja estarrado no meio da rua. Mas arrastar um bêbado é mais difícil do que escrever uma crônica: é como arrastar um morto, no caso um morto de beber, que, com o tempo, tende a inchar e esticar a pele do rosto como se tivesse feito uma plástica bem-sucedida que lhe dá aquele ar ao mesmo tempo nem alegre nem triste. Isso, é claro, é mais comum ver em pessoas ditas “sóbrias e respeitáveis” que infestam os meios sociais.
Ainda não tive a oportunidade de arrastar um bêbado ou um morto, somente um homem que foi atropelado, tirando-o debaixo do carro enquanto o motorista se descabelava. Mas, não faz muito tempo, tarde da noite voltava para casa caminhando e houve uma queda de luz pública quase no mesmo instante que vi um bêbado indo pelo meio da rua. Na semiescuridão parecia se sentir confortável apesar de vacilar, e de repente parou, arremessando o corpo para frente... mas uma força contrária, efeito do combustível que ingeriu, o movimentou para trás e caiu de costas. Apressei o passo e vi que ele caiu bem, isto é, não bateu a cabeça no asfalto. Ajudei-o a se levantar pegando sua mão, que respondeu com firmeza. Tive que fazer bastante esforço para levantá-lo, me agradecendo depois que o levei até a calçada: “Obrigado cidadão, obrigado”. Acho que assim fui chamado pela primeira vez. Bom cidadão que às vezes sou, aconselhei-o a ir pela calçada por causa dos veículos ou por causa de outro bêbado, tirando dele um riso gutural.
Segui em frente na rua que se afunilava como se fosse o cenário de um filme de terror. Para me certificar, olhei para ver como estava o homem, que conheço de vista. Estava de novo no meio da rua... Bom, pensei, assim são os bêbados, que não sabem onde estão, ou sabem por analogias porque estão rodeados de sofismas.


Um comentário:

Unknown disse...

sô jayro, com um gole no gelo e um galo na gola eu também já passei e ultrapassei e transpassei poressas e poroutras mas dificilmente achando um cidadão. só me lembro de um cidadão que se chamava são paulo e/ou rio de janeiro, (já não sialembro)mas daí já era outra coisa (ou outra cidade). quando vi, tava em buenos aires, airando os ares da palavra, daquela lavra que só as larvas gostam.

amprex do palavrini. rá!