Por Hamilton Alves
Fotograma de Limite, filme
de Mário Peixoto
Silveira de Souza e Hugo Mund Jr. são grandes amigos e
transitam pela existência com interesse comum pela literatura e pelas artes em
geral.
Mas o que tem a ver os dois com esta crônica?
Na última madrugada, tive um sonho angustiante com
ambos, com os quais, apesar de minha amizade, nunca experimentei essa sensação
esquisita no mundo do faz-de-conta.
Estávamos em algum lugar difuso, uma festa, uma
reunião de pessoas. A certa hora, Silveira saiu do meio de todos e embarafustou
em direção de uma área livre. Lá encontrou um pequeno cemitério, abriu uma
cova, coberta com uma laje (há de se perguntar onde encontrou forças para
tanto, franzino como é). Não contente, resolveu também abrir o caixão, onde um
corpo se encontrava já em adiantada fase de decomposição.
Foi então que Silveira, sem mais nem menos, ele que é,
em geral, circunspecto e caladão, decidiu-se a proferir um discurso em altos
brados, evocando o morto:
– Em vida, dizia ele, erguendo os braços para o alto,
o que fizeste, imbecil?
Diante disso, estupefatos, amigos se acercaram, muito
curiosos, em torno de Silveira.
– Ele enlouqueceu – disse uma pessoa entre as demais.
Mas disse-o à boca pequena, como se tivesse receio de desencadear um alvoroço.
E o Silveira continuava impávido em sua catilinária:
– O que fazes aí dentro, imbecil?
Aberto o caixão, via-se lá dentro o morto dilacerado.
O fato causava um impacto grande nos presentes, uns se arrepiavam, outros
torciam o nariz e se mostravam escandalizados, enquanto o Silveira, mais
entusiasmado, mandava brasa:
– Por que não te ergues daí, imbecil?
A certa hora, duas ou três pessoas agarraram o
Silveira e o levaram para o interior da casa, e tiveram que fazê-lo não à
força, porque ele, resoluto como estava, não se deixou levar facilmente.
Foi então que o Hugo, vestido a caráter, em estilo
carnavalesco, com uma fantasia que lhe cobria desde a cabeça até os pés, com
uma calda enorme atrás, houve por bem de por-se adiante de outro túmulo aberto
e a fazer imprecações, mais ou menos idênticas às do Silveira.
Também ele teve que ser levado dali.
Mas quando era assim reconduzido ao local em que se
encontrava um grande número de pessoas, todas mais ou menos perplexas diante
dos acontecimentos, Hugo, resistente ainda às pressões, disse:
– É o futuro!... É o futuro!...
Coberto de suor, despertei, ergui-me, fui até a janela
do quarto, olhei lá fora. Notei que ainda era escuro, passava uma carreta
barulhenta conduzida por um cavalo; um homem açoitava-o com um chicote e
promovia na madrugada uma certa algazarra.
O que é que poderiam significar as palavras do Hugo,
quando fora afastado do túmulo aberto, com um cadáver à mostra, dizendo: “é o
futuro!... é o futuro!...
Qual sentido desse sonho macabro, já que,
freudianamente, pode-se fazer qualquer conclusão, ainda que meio louca, sobre
os sonhos?
Durante muito tempo, refleti sobre isso, em vão,
claro.
(Crônica extraída de O cuco e o apocalipse, Bernúncia Editora, 2003)
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