quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Iconografia urbana

Xilogravuras de Chico Marinho




Chico Marinho, gravador na melhor acepção do termo, tem uma percepção crítica acerca das desagregações na vida urbana que, em vários aspectos, beiram o catastrófico. É por isso que suas imagens perfilam mundos paralelos e antagônicos. (J.S.)


terça-feira, 29 de janeiro de 2013

No limite

Por Jayro Schmidt


O filme Limite é uma raridade na cinematografia brasileira por ser cine-poema, escrito com o impacto de uma visão do autor, Mário Peixoto, ao passar por uma banca de jornal em Paris, quando a imagem estampada na capa de uma revista fez irromper de sua mente o que seria o filme, um poema de imagens, cujos fotogramas podem ser lidos como se formassem uma longa e enigmática frase visual.
Todas as imagens do filme são reconhecíveis, embora paradoxais uma vez relacionadas entre si com fusões que são a própria narrativa que exige do receptor uma disponibilidade imaginária para assimilar o sentido vislumbrado por Mário Peixoto na foto da revista, os punhos algemados de um homem e a mulher entre seus braços.
Havia algo em Mário Peixoto, um conflito de ordem familiar, algo que já havia acontecido e que agora, no dia da banca de jornal em 1929, encontrava as imagens de uma imagem que o fez estremecer no conflito com o pai, do qual não se conhece detalhes, somente indícios no filme e no livro que posteriormente escreveu, O inútil de cada um, retomado com o exemplar salvo do ódio de seu pai, que comprou toda a edição, queimando-a.

  

A foto da revista “Vu” fez reboar em Mário Peixoto, em suas palavras, “uma coisa meio secreta”, e teve a visão de “um mar de fogo, um pedaço de tábua e uma mulher agarrada”. O filme inicia e termina com um píncaro e aves em sobrevoo, mas, no final, no auge do desespero de Olga no barco perdido no mar, a linha do horizonte oscila e se funde com vagas ao som de Prokofieff, a tempestade: choque de vagas, turbulência e repouso, vaga corre, refluxo, turbulência, retorno da vaga, e assim por diante até reaparecer o horizonte marinho oscilante, aos poucos a aproximação de Olga agarrada à tábua.



Em todas as vezes que assisti Limite, a plateia ficou em total silêncio, imobilizada, e ainda por alguns minutos após o término das projeções. Teria acontecido com tantas pessoas o que havia acontecido com Mário Peixoto durante a visão, o sentimento de uma “extrema limitação”? Mais tarde ele explicou que o título do filme somente poderia ser este, “limite”.
A fusão de imagens predomina no filme em recuos e avanços cênicos que Mário Peixoto filmou com analogia de formas. Além de ter favorecido tempos não-lineares, o recurso da câmera-memória conferiu à sua intenção cinematográfica uma lógica da linguagem quando se apreende que o sentido de uma imagem depende do sentido de outra imagem. O campo do visível, assim, suscita o campo do legível, pois no desfazer-se de uma imagem com o fazer-se de outra, vemos em suas aparições o que narram como propriedades específicas das palavras, apesar do filme estar longe do literário. As imagens uma vez vistas provocam as palavras que estavam submersas e que a intuição poética teve o dom de provocar.
Foi a visão que ditou o roteiro, e o recurso da fusão não seria suficiente se a montagem não tivesse sido o que foi para fazer de Limite um filme extraordinário. Octávio de Faria comenta que Mário Peixoto não esqueceu a lição de Léon Moussinac: montar um filme é ritmar um filme. O ritmo, que faz com que as imagens se correspondam, esteve presente o tempo todo na filmagem e em cena por cena uma vez montado como duração. Octávio de Faria acrescenta que o filme foi rigorosamente planejado, não sendo, então, uma descrição de um roteiro, o que comprova outra vez que uma obra de arte surge e é feita. E ainda não foi realizado nenhum estudo acerca dessa duração cênica em relação à trilha sonora, imagem e som em perfeita sintonia.
O filme de Mário Peixoto foi lançado no Rio de Janeiro, em 1931, e, mais tarde, foi visto em Paris por alguns cineastas revolucionários e extraviado, ou esquecido. Reencontrado por Saulo Pereira de Mello, por ele foi restaurado e publicado como mapa do filme em fotogramas que disponibilizam detalhes estéticos da câmera deslizando e se fixando com tempo suficiente para que a vertigem invada o olhar e a consciência. Um filme considerado como estética da natureza ao abstrair da imagem o lugar-comum, o pitoresco, o que é o mínimo na imaginação de Mário Peixoto. O máximo é a sua capacidade poemática de transbordar o todo em suas partes através da iconografia, o que fez da estética uma semiótica da estocástica inicial, que foi a visão que o levou ao roteiro e deste à realização cinematográfica.


segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Mitologia do artista (Joseph Beuys)

Redação do blog



O artista alemão Joseph Beuys (1921-1980) juntou vida e ficção da vida, criando a sua mitologia artística. Nasceu, conforme suas palavras, “de uma ferida contida com esparadrapo”. Estudou medicina, sobreviveu a um desastre de avião, sendo curado com feltro e gordura animal por nativos. Ao retornar à civilização, “enfrentou uma crise profunda, familiar a todos os grandes artistas, que lhe permitiu elaborar os princípios básicos de sua arte”.
Além de realizar a plenitude da arte do reanimar, Joseph Beuys deu voz à outra de suas vocações, a pedagogia através da palavra dita e escrita. É que ele acreditava na potencialidade humana para a arte, perdida, oprimida, desviada por tantos fatores. Foi assim que levou a efeito a natureza própria do pedagogo, que é aquele que mostra o caminho do saber, formulando seus ensinamentos como postulados da reversão. Reversão por evitar o ensino tradicional da arte com os habituais e inibidores meios técnicos e estéticos.
O primeiro postulado diz respeito à presença do artista em ação comportamental, expondo suas ideias como obra da fala; o segundo postulado refere-se à perda de sentido existencial e de conhecimento essencial, propondo o retorno ao saber elementar; o terceiro postulado é uma estratégia reflexiva sobre o ensino que, ao ser proferido, torna-se uma lição que deve ser propagada: qualquer pessoa pode ser ensinada e fazer o mesmo. (J.S.)


sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Companheiros Psíquicos

Por Jayro Schmidt



Desde sempre, tenta-se provar que fantasmas existem.
Pois bem, eles existem. Todos têm os seus e algumas pessoas dão forma às fantasmagorias. Afinal, fantasma e fantasia andam de mãos dadas.
Quem não viu ainda essas coisas sem matéria, espectrais vamos dizer, mas que são nossos companheiros psíquicos?
O poeta português Fernando Pessoa estava fascinado, e também decepcionado, com Esteves por não ter metafísica.
Conclui-se que Fernando Pessoa queria, mas não podia livrar-se dos fantasmas, em seu caso os heterônimos que deram voz à sua mente povoada de paredros, essas criaturas que aconselham e guiam.
Querendo ou não, ninguém vive sem fantasmas, que são necessários e participam de maneira ativa na formação da vida desde que aparece no ventre. Aliás, por falar nisso, o feto é um dos mais perfeitos fantasmas que se conhece.
Podem-se fazer tantas coisas ao longo do tempo, porém, o que de fato se faz é elaborar os fantasmas para que possamos conviver com o desconhecido, com o estranho.

Desenho de Luis Viderbost

Além de espectro e paredro, mais duas palavras dizem tudo sobre matéria tão sutil: eidola, a imagem-fantasma, e pareidolia, a manifestação do fantasma.
Inumeráveis são suas presenças em todas as artes, todas provenientes de constatações pessoais que ampliam o campo relacional entre imanência e transcendência. Para ilustrar, comento fantasmagorias de Kafka e Munch.
A imagem-fantasma permeia toda a obra ficcional de Kafka e, para tantos outros autores, ele foi e tem sido um fantasma. Dentre as suas visões nesse sentido, é saborosa a dos limpadores de chaminés, trabalhadores comuns na Europa de então. Visão infantil, nos quais via demônios que mais tarde associou aos dilemas do nascer e do morrer, mais do morrer que exprimiu numa frase que continua causando perplexidade:

Estar morto, isso significa para o homem o mesmo como o domingo para os limpa-chaminés: lavam-se da fuligem.

Tais demônios prolongaram-se em sua mente adulta permeável aos espectros, que são figuras mitificadas que serviam à educação pelo temor que causa e que vivificava toda a literatura fabulosa do norte europeu.
Não menos alucinatória é a obra de Munch, especificamente o espectro que grita, pintura que se reportou a uma experiência também subliminar quando andava com dois amigos no crepúsculo da tarde. Próximos a uma ponte, o pintor sentiu grande tensão e não pode caminhar mais. Foi então que viu as nuvens cobrindo-se de sangue, e ouviu um grito ou um gemido que bem conhecemos através do fantasma que pintou.

O grito, Munch

Por estas, e por outras, não é à toa que Leonardo da Vinci recomendava a seus poucos alunos que olhassem uma parede envelhecida por longo tempo, até que surgissem imagens que, na realidade, são provocadas por certas disposições psicofisiológicas.
Talvez Leonardo da Vinci tenha refletido sobre a necessidade de fantasmas, pois ele acreditava, apesar de todo o seu empirismo, na imaginação. Fantasmas como companheiros psíquicos, como são os gatos, que não se aproximaram dos homens por causa dos ratos que se aproximaram por causa dos grãos.
Pelo menos era assim que pensavam os Maias e os Astecas.


quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Monstrinhas (03)

Por Kelly Kreis Taglieber



Memórias da menina gravada – livro da artista


quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Êmulo (Cruz e Sousa)

Redação do blog



O poeta Cruz e Souza nasceu na antiga Desterro, 1861-1898, hoje Florianópolis. Foi ponto de teatro, como se isso reafirmasse a sua invisibilidade numa época em que predominava a pseudociência positivista que procurava provar que os afrodescendentes não tinham capacidade intelectual. A acanhada vida literária na província motivou a ida de Cruz e Sousa para o Rio de Janeiro, naquela época cenário de consideráveis mudanças que deixavam à vista dois regimes paralelos e antagônicos, o da monarquia capenga e o da república incipiente. O poeta de Desterro foi um dos principais ativistas de liberações, do abolicionismo especificamente, que levou muito tempo para sair do papel. Com aguda percepção relacionada com problemáticas existenciais, Cruz e Sousa chegou a dizer que não discutia pessoas, porém ideias. E tais dilemas ele condicionou no símbolo, animista e místico tal como vinha expandindo-se na França com Mallarmé e seus epígonos, a ponto de Roger Bastide dizer, muitos anos depois quando esteve no Brasil, que sua poética evocava “uma busca espiritual”. Cruz e Sousa, ao representar a emulação de uma época, foi um dos fundadores da poesia moderna em língua portuguesa. (J.S.)



segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Supremas

Fotografias de Gill Konell


clique nas imagens para ampliar










O olhar fotográfico de Gill Konell faz determinadas escolhas, todas reflexivas. E isso implica, nas imagens obtidas, dizer um sentido através de outro, o que leva à metáfora ou, mais objetivamente, à metamorfia –  transformação de uma coisa em outra, e ao analógico – relação de semelhança entre coisas diferentes. (J.S.)


quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Limerique

por Jayro Schmidt


O termo limerique é um neologismo e nomeia breves poemas de cunho humorístico que cativou o inglês Edward Lear (1812-1888). Na apresentação de Um livro de nonsense, com tradução de Vinícius Alves, Dirce Waltrick avisa que não se sabe ao certo como surgiu, provavelmente do refrão Will you come up to Limerick? que os alegres beberrões irlandeses e ingleses costumavam entoar.
Sem ser irlandês ou inglês, mas tão alegre como eles quando molhavam a palavra, Vinícius Alves, com algumas gotas de engasga gato, nos brindou com mais de 50 limeriques, traduzidos e adaptados e com as ilustrações do autor, pois Lear foi desenhista e pintor.



Havia uma Menina nas Bahamas,
Que pescou um peixão sem escamas:
Quando levantou seu caniço,
Ela exclamou: “Que coisa mais louca!
O meu peixe já veio sem roupa!”


Havia um Velhinho em Berlim,
Mais magro que o meu dedo mindim,
Até que num dia errado,
À massa ele foi misturado,
Pelas doceiras que faziam quindim.

Logo nota-se que Vinícius Alves, com o mindim e o quindim “traduzadaptou” do mestre Guima. Aliás, no último limerique do livro, ele fez a coisa “a la Guimarães Rosa”, que ao escrever já traduzia, quero dizer, transluzia.


A cara e o Cara e a coruja, uja,
Lambuzaram-se e ainda de lambuja
Sessentaram numa cerca,
E sorveram muita cerva,
Encarando cada qual uma coruja.


quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Político (03)

Xilogravura de Kelly Kreis Taglieber



terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Ensaio

Foto de Márcio Henrique Martins




Olha aí, Muriel Garcez, se preparando para ensaiar a cena na oficina Corpo sensível, que reuniu jovens apaixonados pelo cinema. E o Márcio Henrique Martins preferiu, naquele momento, transferi-la projetando-se para frente pensando no que iria fazer. (J.S.)


segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Meteórica (Ana C.)

Redação do blog






Ana Cristina César (1952-1983) foi precoce na arte de escrever e escreveu com regularidade. Na coleção Perfis do Rio, Ítalo Moriconi, na biografia que leva o nome da poeta, diz: “Gaveta de poeta forte morta precoce é fogo. Sai papel feito coelho de cartola de mágico. Ana deixou cadernos e pastas com muitos rascunhos, poemas mais ou menos terminados, traduções e esboços de traduções, deixou malas cheias de agendas, bloquinhos de anotações, diários”.
Observem que Moriconi empregou o termo poeta forte para situar uma mulher que ousou desafiar a sublimidade da poesia. Somente poetas assim podem fazer isso, e Ana C. o fez numa época desfavorável para tanto, na qual, em função de fatores históricos marcados pela ditadura militar, predominou uma literatura de cunho ideológico numa poesia simples, às vezes planfletária, de fato marginal. De qualquer maneira, Ana C. foi marginal, porém sofisticada, ciente de que escrever é um ato problemático da escrita porque vinculada à existência ou, melhor dizendo, ao ter que existir.
A brevidade de sua vida foi intensa, Ana C. de paradoxos encobertos pelo literário e descobertos por sua franca antiliteratura com os amados Baudelaire, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, T. S. Eliot e Jorge de Lima.
Para quem ainda não conhece Ana C., transcrevo duas pitadas:

olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado entre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas

****

eu dentro do templo chuto o tempo
uma palavra me delineia
voraz
e em breve a sombra se dilui
se perde o anjo

A bibliografia sobre Ana C. cresce a cada dia, e, para começar, nada melhor do que ler o ensaio intimista de Flora Süssekind, Até segunda ordem não me risque nada, Sette Letras, 1995; a tese de doutorado de Maria Lucia de Barros Camargo, Atrás dos olhos pardos, Argos, 2003; e, naturalmente, a biografia de Ítalo Moriconi, Ana Cristina César, Relume Dumará, 1996. (J.S.)



quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Fera

Por Jayro Schmidt


A força solar na pintura de Henri Matisse contagiou jovens artistas em vias de integrarem a primeira vanguarda artística do século 20. O nome do movimento foi dado, pejorativamente, por um crítico obtuso, Louis Vauxelles, ao visitar a exposição de 1905 em Paris. Disse ele, desconcertado: “Donatello entre as feras!”
É que Albert Marquet resolveu fazer uma estatueta clássica, expondo-a no meio de pinturas que ofenderam o olhar daqueles que ainda pensavam que a arte não deveria ir além da imitação.
E nenhum fauve foi tão longe como Matisse na reviravolta pictórica que fez a estética evoluir para a semiótica, desta maneira ampliando a gramática do designer gráfico.

  

Desenho é desígnio, tendo no traço a propriedade ordenadora que, no caso de Matisse, foi sempre o ponto de partida para a cor numa mistura do intuitivo e do intelectual.


Ao contrário de seu contemporâneo Picasso – um bronco quando teve que verbalizar o que fazia – Matisse deixou testemunhos substanciais nesse sentido. Mais uma vez, com ele, a percepção tornou-se informativa numa completa relação entre o exterior, com a sinestesia, e o interior, com a cenestesia.
Matisse chegou a levantar questões da arte que somente os mais avançados pensadores fizeram. No auge de sua arte ele se perguntou sobre a atualidade e a posteridade da obra. Deveria, o significado da arte, ser avaliado com os pressupostos do presente ou da época em que foi realizada?
Sabe-se que a arte perdura quando, sem deixar de ser de sua época, tem o poder da antecipação. Perdura ao desdobrar seu tempo em outros tempos, seu sentido em outros sentidos.
A idéia de antecipação está no próprio processo da pintura de Matisse. Ao atingir determinados efeitos, neles vislumbrava a potência não somente de outras variações, mas, sobretudo, de diferenças quanto ao sentido de planificação da imagem como se vê no tratamento dos corpos em obras que representam a fusão entre o sensível e o inteligível.


quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Apotegma de Kafka (03)

Tradução de Luiz Carlos Mesquita


Desenho de Franz Kafka


O momento decisivo do desenvolvimento humano é perpétuo. Por isso todos os movimentos intelectuais revolucionários, que declaram o antepassado por nulo, têm razão, porque ainda não aconteceu nada.


terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Monstrinhas (02)

Por Kelly Kreis Taglieber








Memória da menina gravada – livro da artista

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Noite Estrelada

Redação do blog






Durante o ano de 1899, Vincent van Gogh sentiu medo de voltar a causar transtornos aos demais. Os episódios de Arles, que culminaram com a orelha cortada, proporcionaram a ele a plena consciência de sua condição emocional, internando-se voluntariamente no hospício Saint-Paul-de-Mausole, mosteiro medieval do século 12, em Saint-Rémy, região em que Nostradamus nasceu.
Entre os loucos, ali ele poderia exilar-se das pressões externas e não se reconhecendo como herói, mas como alguém que não poderia fazer outra coisa a não ser pintar. E foi o que continuou fazendo com a eletricidade do raio que teve a oportunidade de ver o efeito na árvore decepada quando saiu para pintar.
Tais projeções eletrizadas são sinestesias concentradas na atividade retiniana com a mesma velocidade com que a luz se desloca no espaço, deixando um rastro de sombra. Então, como em outras vezes, van Gogh quis pintar a noite, antes se deparando com corredores, lugares íngremes e pedreiras. É que o pânico, desde que chegou ao hospício, foi aos poucos cedendo como se comprova nas obras que realizou do interior ao pátio e deste aos arredores.
Os corredores contracenam com as paisagens em forma de funil como se fossem fronteiras de sua mente que recorria a um conflito perspectivo com dois pontos de fuga, descentrando o ponto de vista único e enviando a visão a regiões as mais afastadas entre si – que pulsavam em seu cérebro.
Por outro lado, ao esboçar os corredores, van Gogh estava dentro, e, depois, postou-se diante da entrada de uma pedreira numa perfeita reversão de territórios, nos quais a luz e a sombra se confundem, como se ele quisesse vislumbrar luminosidade na escuridão.
Sabe-se que o pintor recorreu à imaginação nessa pintura, mas foi constatado por astrofísicos que as posições das estrelas são as mesmas daquela noite de junho de 1889. O ângulo do olhar, do alto e frontal, também foi imaginário, aproximando o pintor do firmamento enquanto a proximidade da aldeia recua entre o cipreste descomunal em forma de labaredas e as montanhas sinuosas, imagens típicas da alucinação visual.
Assim, a noite estrelada é visionária a partir de uma experiência comum e tão antiga quanto o homem: somente aos poucos o escuro fica claro. (J.S.)