terça-feira, 29 de janeiro de 2013

No limite

Por Jayro Schmidt


O filme Limite é uma raridade na cinematografia brasileira por ser cine-poema, escrito com o impacto de uma visão do autor, Mário Peixoto, ao passar por uma banca de jornal em Paris, quando a imagem estampada na capa de uma revista fez irromper de sua mente o que seria o filme, um poema de imagens, cujos fotogramas podem ser lidos como se formassem uma longa e enigmática frase visual.
Todas as imagens do filme são reconhecíveis, embora paradoxais uma vez relacionadas entre si com fusões que são a própria narrativa que exige do receptor uma disponibilidade imaginária para assimilar o sentido vislumbrado por Mário Peixoto na foto da revista, os punhos algemados de um homem e a mulher entre seus braços.
Havia algo em Mário Peixoto, um conflito de ordem familiar, algo que já havia acontecido e que agora, no dia da banca de jornal em 1929, encontrava as imagens de uma imagem que o fez estremecer no conflito com o pai, do qual não se conhece detalhes, somente indícios no filme e no livro que posteriormente escreveu, O inútil de cada um, retomado com o exemplar salvo do ódio de seu pai, que comprou toda a edição, queimando-a.

  

A foto da revista “Vu” fez reboar em Mário Peixoto, em suas palavras, “uma coisa meio secreta”, e teve a visão de “um mar de fogo, um pedaço de tábua e uma mulher agarrada”. O filme inicia e termina com um píncaro e aves em sobrevoo, mas, no final, no auge do desespero de Olga no barco perdido no mar, a linha do horizonte oscila e se funde com vagas ao som de Prokofieff, a tempestade: choque de vagas, turbulência e repouso, vaga corre, refluxo, turbulência, retorno da vaga, e assim por diante até reaparecer o horizonte marinho oscilante, aos poucos a aproximação de Olga agarrada à tábua.



Em todas as vezes que assisti Limite, a plateia ficou em total silêncio, imobilizada, e ainda por alguns minutos após o término das projeções. Teria acontecido com tantas pessoas o que havia acontecido com Mário Peixoto durante a visão, o sentimento de uma “extrema limitação”? Mais tarde ele explicou que o título do filme somente poderia ser este, “limite”.
A fusão de imagens predomina no filme em recuos e avanços cênicos que Mário Peixoto filmou com analogia de formas. Além de ter favorecido tempos não-lineares, o recurso da câmera-memória conferiu à sua intenção cinematográfica uma lógica da linguagem quando se apreende que o sentido de uma imagem depende do sentido de outra imagem. O campo do visível, assim, suscita o campo do legível, pois no desfazer-se de uma imagem com o fazer-se de outra, vemos em suas aparições o que narram como propriedades específicas das palavras, apesar do filme estar longe do literário. As imagens uma vez vistas provocam as palavras que estavam submersas e que a intuição poética teve o dom de provocar.
Foi a visão que ditou o roteiro, e o recurso da fusão não seria suficiente se a montagem não tivesse sido o que foi para fazer de Limite um filme extraordinário. Octávio de Faria comenta que Mário Peixoto não esqueceu a lição de Léon Moussinac: montar um filme é ritmar um filme. O ritmo, que faz com que as imagens se correspondam, esteve presente o tempo todo na filmagem e em cena por cena uma vez montado como duração. Octávio de Faria acrescenta que o filme foi rigorosamente planejado, não sendo, então, uma descrição de um roteiro, o que comprova outra vez que uma obra de arte surge e é feita. E ainda não foi realizado nenhum estudo acerca dessa duração cênica em relação à trilha sonora, imagem e som em perfeita sintonia.
O filme de Mário Peixoto foi lançado no Rio de Janeiro, em 1931, e, mais tarde, foi visto em Paris por alguns cineastas revolucionários e extraviado, ou esquecido. Reencontrado por Saulo Pereira de Mello, por ele foi restaurado e publicado como mapa do filme em fotogramas que disponibilizam detalhes estéticos da câmera deslizando e se fixando com tempo suficiente para que a vertigem invada o olhar e a consciência. Um filme considerado como estética da natureza ao abstrair da imagem o lugar-comum, o pitoresco, o que é o mínimo na imaginação de Mário Peixoto. O máximo é a sua capacidade poemática de transbordar o todo em suas partes através da iconografia, o que fez da estética uma semiótica da estocástica inicial, que foi a visão que o levou ao roteiro e deste à realização cinematográfica.


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