Por Jayro Schmidt
O filme Limite
é uma raridade na cinematografia brasileira por ser cine-poema, escrito com o
impacto de uma visão do autor, Mário Peixoto, ao passar por uma banca de jornal
em Paris, quando a imagem estampada na capa de uma revista fez irromper de sua
mente o que seria o filme, um poema de imagens, cujos fotogramas podem ser
lidos como se formassem uma longa e enigmática frase visual.
Todas as imagens do filme são reconhecíveis, embora
paradoxais uma vez relacionadas entre si com fusões que são a própria narrativa
que exige do receptor uma disponibilidade imaginária para assimilar o sentido
vislumbrado por Mário Peixoto na foto da revista, os punhos algemados de um
homem e a mulher entre seus braços.
Havia algo em Mário Peixoto, um conflito de ordem
familiar, algo que já havia acontecido e que agora, no dia da banca de jornal
em 1929, encontrava as imagens de uma imagem que o fez estremecer no conflito
com o pai, do qual não se conhece detalhes, somente indícios no filme e no
livro que posteriormente escreveu, O
inútil de cada um, retomado com o exemplar salvo do ódio de seu pai, que
comprou toda a edição, queimando-a.
A foto da revista “Vu” fez reboar em Mário Peixoto, em
suas palavras, “uma coisa meio secreta”, e teve a visão de “um mar de fogo, um
pedaço de tábua e uma mulher agarrada”. O filme inicia e termina com um píncaro
e aves em sobrevoo, mas, no final, no auge do desespero de Olga no barco
perdido no mar, a linha do horizonte oscila e se funde com vagas ao som de
Prokofieff, a tempestade: choque de vagas, turbulência e repouso, vaga corre,
refluxo, turbulência, retorno da vaga, e assim por diante até reaparecer o
horizonte marinho oscilante, aos poucos a aproximação de Olga agarrada à tábua.
Em todas as vezes que assisti Limite, a plateia ficou em total silêncio, imobilizada, e ainda por
alguns minutos após o término das projeções. Teria acontecido com tantas
pessoas o que havia acontecido com Mário Peixoto durante a visão, o sentimento
de uma “extrema limitação”? Mais tarde ele explicou que o título do filme
somente poderia ser este, “limite”.
A fusão de imagens predomina no filme em recuos e
avanços cênicos que Mário Peixoto filmou com analogia de formas. Além de ter
favorecido tempos não-lineares, o recurso da câmera-memória conferiu à sua
intenção cinematográfica uma lógica da linguagem quando se apreende que o
sentido de uma imagem depende do sentido de outra imagem. O campo do visível,
assim, suscita o campo do legível, pois no desfazer-se de uma imagem com o fazer-se
de outra, vemos em suas aparições o que narram como propriedades específicas
das palavras, apesar do filme estar longe do literário. As imagens uma vez
vistas provocam as palavras que estavam submersas e que a intuição poética teve
o dom de provocar.
Foi a visão que ditou o roteiro, e o recurso da fusão
não seria suficiente se a montagem não tivesse sido o que foi para fazer de Limite um filme extraordinário. Octávio de Faria
comenta que Mário Peixoto não esqueceu a lição de Léon Moussinac: montar um
filme é ritmar um filme. O ritmo, que faz com que as imagens se correspondam,
esteve presente o tempo todo na filmagem e em cena por cena uma vez montado
como duração. Octávio de Faria acrescenta que o filme foi rigorosamente
planejado, não sendo, então, uma descrição de um roteiro, o que comprova outra
vez que uma obra de arte surge e é feita. E ainda não foi realizado nenhum
estudo acerca dessa duração cênica em relação à trilha sonora, imagem e som em
perfeita sintonia.
O filme de Mário Peixoto foi lançado no Rio de
Janeiro, em 1931, e, mais tarde, foi visto em Paris por alguns cineastas
revolucionários e extraviado, ou esquecido. Reencontrado por Saulo Pereira de
Mello, por ele foi restaurado e publicado como mapa do filme em fotogramas que
disponibilizam detalhes estéticos da câmera deslizando e se fixando com tempo
suficiente para que a vertigem invada o olhar e a consciência. Um filme
considerado como estética da natureza ao abstrair da imagem o lugar-comum, o
pitoresco, o que é o mínimo na imaginação de Mário Peixoto. O máximo é a sua
capacidade poemática de transbordar o todo em suas partes através da
iconografia, o que fez da estética uma semiótica da estocástica inicial, que
foi a visão que o levou ao roteiro e deste à realização cinematográfica.
Nenhum comentário:
Postar um comentário