quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

De poetas e de poemas

Por Jayro Schmidt



Jorge de Lima é poeta de pouca receptividade no caminho desbravado pela Semana de 22. Simplesmente por ter se desviado das coisas mais terrenas com as soluções magistrais dos modernistas em suas primeiras horas e no prosseguimento com o coloquial, poetas do prosaico sem que tenham caído na armadilha de uma escrita prosaica. Jorge de Lima é praticamente um poeta isolado por ter reverberado a transcendência, e com um lirismo dramático que o situa em uma esfera ao mesmo tempo exígua e extensa, na qual o tempo recebe um corte que origina outro tempo, o da linguagem.
Esta linguagem, que beira o subliminar, procede de um ramo arcaico – ibérico e barroco – porém ramificação que se estende para fora de si, revisando-se e atualizando-se. Incomum é essa poética no cenário da poesia brasileira e que inaugura de forma efetiva a metalinguagem ou a intertextualidade como preferem os acadêmicos. Até hoje se discute sobre os mistérios da poesia do inventor de Orfeu, quando o mais significante nele foi o deixar-se contaminar por precedentes, tais como Virgílio, Dante, Milton, Camões e outros, como também os escritos bíblicos. Aliás, muitos trechos bíblicos são transmissões por legendas, sentenças e divisas aperfeiçoadas pelos escritos. Os apócrifos, em muitos casos, foram mais longe neste sentido. Diria que Jorge de Lima é um poeta apócrifo em termos de releitura da poesia sob o influxo do metamoderno. Um poeta que caminha para trás enquanto avança para o futuro por volição do que foi dito e que o prepara para dizer por outras vias como se lê em Invenção de Orfeu. Ao apropriar-se de poetas de sua preferência, Jorge de Lima livra-se do débito da influência, traduzindo-os para a formação de seu paideuma. Uma das colagens mais conhecidas é a alusão a Virgílio.

A garupa da vaca era palustre e bela,
uma penugem havia em seu queixo formoso;
e na fronte lunada onde ardia uma estrela
pairava um pensamento em constante repouso.

O poema de Jorge de Lima, publicado em 1952, lembra os mistérios e narra com linguagens diferentes, mutantes nos dez cantos, a fundação de uma ilha, empreitada de um “barão assinalado, sem brasão, sem gume e fama”, reverso de Camões. Um Orfeu despojado, mas saturado de memória que seu fluxo de consciência traça em pesadelo lírico. Poema de uma noite insone, na qual as imagens são velozes em contraste com a lentidão noturna. Sem proteção e posse, o barão funda-se na fundação da ilha. Tanto melhor assim, eco do Satã de Milton, que ao cair para fora de si no solo, fundou o inferno. Por falar em imagens, Jorge de Lima depurou-as no entrecruzamento de poéticas e chegou a conceber um álbum de fotomontagens, em 1943, A pintura em pânico. Imagens em camadas sucessivas e expropriadas da função fotográfica inicial assim como, por índices e símbolos, os grifos nas palavras.

Para a unidade deste poema,
ele vai durante a febre,
ele se mescla e se amealha,
e por vezes se devassa.

Jorge de Lima, para Mário Faustino, é “um pequeno poeta maior”, porém o “nosso único poeta maior”. Pequeno se comparado com poetas de línguas europeias, maior se comparado com poetas brasileiros, alguns deles rejuvenescidos por Rilke.
Deve-se a estes poetas o que se deve aos amantes de mistérios. Transparências em transparências por impulsos elegíacos, nos quais Rilke era versado com as metáforas do anjo e do animal, figuras recorrentes na poesia nórdica, sobremaneira em Trakl.
Em carta a Ficker, amigo e protetor de Trakl, Rilke pergunta: “quem poderá ter sido?” Rilke havia descoberto os poemas do austríaco e, deslumbrado por sua voz evocativa, queria saber sobre a pessoa. Mesmo tendo notícias sobre ele, continuou com essa impressão, pois Trakl está em sua poesia como uma sombra, a sombra do poema de Else Lasker-Schüler, musa dos expressionistas: “Sua sombra permaneceu sem explicação / no entardecer do meu quarto”.
Durante os combates da Primeira Guerra Mundial, hospitalizado, Trakl tentou o suicídio pela primeira vez; na segunda tentativa, morreu com uma superdose de cocaína, aos 27 anos. Formou-se em farmácia e foi dependente de narcóticos, assim como sua irmã mais nova, Gretl, por quem devotou grande paixão. Atribui-se a ela um forte temperamento “e a decidida condução da relação incestuosa” com o irmão. Gretl é uma das constantes imagens em Trakl. Outras são as dos anjos e das cores, principalmente o azul, cultuado pelo romântico Novalis: “Desejo ver a flor azul. Ela não abandona a minha mente, e não posso escrever e pensar em outra coisa”.
Trakl: olhos azulados, pálpebras azuis, do azul em ruínas surge às vezes um corpo sem vida, a figura azul do homem passava em sua lenda, uma borboleta azul saía da crisálida prateada, o azul de meus olhos apagou-se nesta noite, manto azul, lago azul, cristal azul, água azul no fundo da rocha, santidade de flores azuis, do azul em decomposição apareceu a pálida figura da irmã, abrem-se azuis os olhos-papoula de um anjo, anjos cristalinos, anjos com asas sujas de excrementos, anjo brônzeo, anjo rosado, um anjo devagar aparecia à criança, quando na sombra de Sebastião expirava a voz prateada do anjo, anjo decaído, anjos de fogo, anjo com dedos de cristal, anjos malditos.
Silêncio, sonho, melancolia e morte permeiam a sua obra. Rilke: “tenho a sensação de que, mesmo para alguém próximo de Trakl, essas perspectivas e visões só aparecem como se através de vidros, como se excluído delas: pois a experiência de Trakl é como uma sucessão de reflexos e preenche todo o seu espaço, inacessível qual o espaço do espelho”.

Na passagem do sol leio o místico Trakl,
poeta do azul, poeta azul.

Passagem por sua lenda fulgurante
no seio da irmã, face de flor que amou.

Sem receio velava o sonho,
rosto abandonado no véu do entardecer.

E ele disse, anjo cristalino:
assustador é o declínio da raça.

Que a tempestade acaricie tuas pálpebras
e não desfaça teu nome na estrela.

A tese de Mário Faustino exprime a grandeza inventiva em poetas de exceção, inclusive os chamados bissextos. São poetas que precisam escrever e constroem suas vidas de acordo com essa necessidade como diz a primeira carta de Rilke ao jovem Franz Xaver Kappus. A essa tese, por conseguinte, se coloca outra e controvertida: se o poema é algo que não se pode evitar, o poema surge, o poeta foi o meio. Eis um capítulo vastíssimo, o transe de alguém por outrem. Talvez, pensam outros poetas: o poema é feito, elaborado. Duas vertentes que acabam se encontrando pelas forças magnéticas que exercem entre si. O poema que surge geralmente é situado como obra do acaso, do aleatório, evitado por uns e, por outros, deliberado experimento. Em ambas as situações não faltam poemas-limites. É isso, então. Há limites que os poetas querem transpor com ou sem acaso. Um fragmento de C. Ronald situa os limítrofes a que me refiro.


deves voltar
deixando o começo
igual digamos à duração
flexível de um astro

Versos sob medida do desmedido. O poeta alude à ordem incontrolável, que independe do humano, descondicionando-se como tal para que possa dizer: ao poema o que é do poema. O que é do poema é a necessidade, dizia Rilke. O necessário para C. Ronald é o “acaso dirigido”, descrito como “aparato formal existente e a intuição no meio de realidades preestabelecidas a partir da razão como, por exemplo, a leitura de uma frase ou de uma idéia capturada num relance ao folhear-se, digamos, uma enciclopédia”. Um método que rearticula memória e imaginação, continuidade e descontinuidade da consciência. O “acaso dirigido” articula, na luta do poeta com as palavras, a natureza subjacente de sema, termo de origem grega que é signo e sepultura. De tanto trabalhar com o acaso, o poeta é trabalhado por ele em repercussões poemáticas que exigem uma segunda leitura, esta com os olhos periféricos para, pelo menos, reunir alusões que abrangem a arte, a filosofia e a ciência, trilogia perpassada pelo absoluto e pelo relativo às vezes sob o dilema do humano e da divindade. A procedência de cada alusão é para o leitor, em sua maior parte, desconhecida no frêmito do poeta ao escrever, que é um ver em si e em todo o panorama oferecido pelas imagens impressas e digitais. Uma poesia virtual com os fragmentos que a compõem, cada um deles como um todo constelar, molecular. Devo ter dito, no breve ensaio escrito sobre C. Ronald, que a nominação semiótica é cambiante na consciência como duração zootrópica de imagens entre silêncios. O “acaso dirigido” relaciona-se com a escolha estocástica, naturalmente sem o rigor matemático de Markov, porém como propriedade que já faz parte da inventividade contemporânea. Diria até que os poemas de C. Ronald são quânticos: compõem um grande poema por extensão de suas partes.


Nenhum comentário: