Por Jayro Schmidt
Jorge de Lima é poeta de pouca receptividade no
caminho desbravado pela Semana de 22. Simplesmente por ter se desviado das
coisas mais terrenas com as soluções magistrais dos modernistas em suas
primeiras horas e no prosseguimento com o coloquial, poetas do prosaico sem que
tenham caído na armadilha de uma escrita prosaica. Jorge de Lima é praticamente
um poeta isolado por ter reverberado a transcendência, e com um lirismo
dramático que o situa em uma esfera ao mesmo tempo exígua e extensa, na qual o
tempo recebe um corte que origina outro tempo, o da linguagem.
Esta linguagem, que beira o subliminar, procede de um
ramo arcaico – ibérico e barroco – porém ramificação que se estende para fora
de si, revisando-se e atualizando-se. Incomum é essa poética no cenário da
poesia brasileira e que inaugura de forma efetiva a metalinguagem ou a
intertextualidade como preferem os acadêmicos. Até hoje se discute sobre os
mistérios da poesia do inventor de Orfeu, quando o mais significante nele foi o
deixar-se contaminar por precedentes, tais como Virgílio, Dante, Milton, Camões
e outros, como também os escritos bíblicos. Aliás, muitos trechos bíblicos são
transmissões por legendas, sentenças e divisas aperfeiçoadas pelos escritos. Os
apócrifos, em muitos casos, foram mais longe neste sentido. Diria que Jorge de
Lima é um poeta apócrifo em termos de releitura da poesia sob o influxo do
metamoderno. Um poeta que caminha para trás enquanto avança para o futuro por
volição do que foi dito e que o prepara para dizer por outras vias como se lê
em Invenção de Orfeu. Ao apropriar-se
de poetas de sua preferência, Jorge de Lima livra-se do débito da influência,
traduzindo-os para a formação de seu paideuma. Uma das colagens mais conhecidas
é a alusão a Virgílio.
A garupa da
vaca era palustre e bela,
uma penugem
havia em seu queixo formoso;
e na fronte
lunada onde ardia uma estrela
pairava um
pensamento em constante repouso.
O poema de Jorge de Lima, publicado em 1952, lembra os
mistérios e narra com linguagens diferentes, mutantes nos dez cantos, a
fundação de uma ilha, empreitada de um “barão assinalado, sem brasão, sem gume
e fama”, reverso de Camões. Um Orfeu despojado, mas saturado de memória que seu
fluxo de consciência traça em pesadelo lírico. Poema de uma noite insone, na
qual as imagens são velozes em contraste com a lentidão noturna. Sem proteção e
posse, o barão funda-se na fundação da ilha. Tanto melhor assim, eco do Satã de
Milton, que ao cair para fora de si no solo, fundou o inferno. Por falar em
imagens, Jorge de Lima depurou-as no entrecruzamento de poéticas e chegou a
conceber um álbum de fotomontagens, em 1943, A pintura em pânico. Imagens em camadas sucessivas e expropriadas
da função fotográfica inicial assim como, por índices e símbolos, os grifos nas
palavras.
Para a
unidade deste poema,
ele vai
durante a febre,
ele se mescla
e se amealha,
e por vezes
se devassa.
Jorge de Lima, para Mário Faustino, é “um pequeno
poeta maior”, porém o “nosso único poeta maior”. Pequeno se comparado com
poetas de línguas europeias, maior se comparado com poetas brasileiros, alguns deles
rejuvenescidos por Rilke.
Deve-se a estes poetas o que se deve aos amantes de
mistérios. Transparências em transparências por impulsos elegíacos, nos quais
Rilke era versado com as metáforas do anjo e do animal, figuras recorrentes na
poesia nórdica, sobremaneira em Trakl.
Em carta a Ficker, amigo e protetor de Trakl, Rilke
pergunta: “quem poderá ter sido?” Rilke havia descoberto os poemas do austríaco
e, deslumbrado por sua voz evocativa, queria saber sobre a pessoa. Mesmo tendo
notícias sobre ele, continuou com essa impressão, pois Trakl está em sua poesia
como uma sombra, a sombra do poema de Else Lasker-Schüler, musa dos
expressionistas: “Sua sombra permaneceu sem explicação / no entardecer do meu
quarto”.
Durante os combates da Primeira Guerra Mundial,
hospitalizado, Trakl tentou o suicídio pela primeira vez; na segunda tentativa,
morreu com uma superdose de cocaína, aos 27 anos. Formou-se em farmácia e foi
dependente de narcóticos, assim como sua irmã mais nova, Gretl, por quem
devotou grande paixão. Atribui-se a ela um forte temperamento “e a decidida
condução da relação incestuosa” com o irmão. Gretl é uma das constantes imagens
em Trakl. Outras são as dos anjos e das cores, principalmente o azul, cultuado
pelo romântico Novalis: “Desejo ver a flor azul. Ela não abandona a minha
mente, e não posso escrever e pensar em outra coisa”.
Trakl: olhos
azulados, pálpebras azuis, do azul em ruínas surge às vezes um corpo sem vida,
a figura azul do homem passava em sua lenda, uma borboleta azul saía da
crisálida prateada, o azul de meus olhos apagou-se nesta noite, manto azul,
lago azul, cristal azul, água azul no fundo da rocha, santidade de flores
azuis, do azul em decomposição apareceu a pálida figura da irmã, abrem-se azuis
os olhos-papoula de um anjo, anjos cristalinos, anjos com asas sujas de
excrementos, anjo brônzeo, anjo rosado, um anjo devagar aparecia à criança,
quando na sombra de Sebastião expirava a voz prateada do anjo, anjo decaído,
anjos de fogo, anjo com dedos de cristal, anjos malditos.
Silêncio, sonho, melancolia e morte permeiam a sua
obra. Rilke: “tenho a sensação de que, mesmo para alguém próximo de Trakl,
essas perspectivas e visões só aparecem como se através de vidros, como se
excluído delas: pois a experiência de Trakl é como uma sucessão de reflexos e
preenche todo o seu espaço, inacessível qual o espaço do espelho”.
Na passagem do sol leio o místico Trakl,
poeta do azul, poeta azul.
Passagem por sua lenda fulgurante
no seio da irmã, face de flor que amou.
Sem receio velava o sonho,
rosto abandonado no véu do entardecer.
E ele disse, anjo cristalino:
assustador é o declínio da raça.
Que a tempestade acaricie tuas pálpebras
e não desfaça teu nome na estrela.
A tese de Mário Faustino exprime a grandeza inventiva
em poetas de exceção, inclusive os chamados bissextos. São poetas que precisam
escrever e constroem suas vidas de acordo com essa necessidade como diz a
primeira carta de Rilke ao jovem Franz Xaver Kappus. A essa tese, por
conseguinte, se coloca outra e controvertida: se o poema é algo que não se pode
evitar, o poema surge, o poeta foi o meio. Eis um capítulo vastíssimo, o transe
de alguém por outrem. Talvez, pensam outros poetas: o poema é feito, elaborado.
Duas vertentes que acabam se encontrando pelas forças magnéticas que exercem
entre si. O poema que surge geralmente é situado como obra do acaso, do
aleatório, evitado por uns e, por outros, deliberado experimento. Em ambas as situações
não faltam poemas-limites. É isso, então. Há limites que os poetas querem
transpor com ou sem acaso. Um fragmento de C. Ronald situa os limítrofes a que
me refiro.
deves voltar
deixando o
começo
igual digamos
à duração
flexível de
um astro
Versos sob medida do desmedido. O poeta alude à ordem
incontrolável, que independe do humano, descondicionando-se como tal para que
possa dizer: ao poema o que é do poema. O que é do poema é a necessidade, dizia
Rilke. O necessário para C. Ronald é o “acaso dirigido”, descrito como “aparato
formal existente e a intuição no meio de realidades preestabelecidas a partir
da razão como, por exemplo, a leitura de uma frase ou de uma idéia capturada
num relance ao folhear-se, digamos, uma enciclopédia”. Um método que rearticula
memória e imaginação, continuidade e descontinuidade da consciência. O “acaso
dirigido” articula, na luta do poeta com as palavras, a natureza subjacente de sema, termo de origem grega que é signo e sepultura. De tanto trabalhar com o acaso, o poeta é trabalhado por
ele em repercussões poemáticas que exigem uma segunda leitura, esta com os
olhos periféricos para, pelo menos, reunir alusões que abrangem a arte, a
filosofia e a ciência, trilogia perpassada pelo absoluto e pelo relativo às
vezes sob o dilema do humano e da divindade. A procedência de cada alusão é
para o leitor, em sua maior parte, desconhecida no frêmito do poeta ao
escrever, que é um ver em si e em todo o panorama oferecido pelas imagens
impressas e digitais. Uma poesia virtual com os fragmentos que a compõem, cada
um deles como um todo constelar, molecular. Devo ter dito, no breve ensaio
escrito sobre C. Ronald, que a nominação semiótica é cambiante na consciência
como duração zootrópica de imagens entre silêncios. O “acaso dirigido”
relaciona-se com a escolha estocástica, naturalmente sem o rigor matemático de
Markov, porém como propriedade que já faz parte da inventividade contemporânea.
Diria até que os poemas de C. Ronald são quânticos: compõem um grande poema por
extensão de suas partes.
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