quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Conto (N)e(u)rótico

por Ingo Schmidt


Fazia algum tempo que esperava, pacientemente, dentro dos estreitos limites da minha paciência. Andando de um lado para outro, sempre na mesma direção, – não em círculos, pois já bastam meus sonhos, que há dias giram sempre em torno do mesmo tema – em um ritmo constante de passos largos e fortes. A cada mudança de sentido, dando meia-volta, girava meu corpo apoiado sobre um dos calcanhares. De repente, errei o passo e estaquei, fixo com um poste ao meu lado, que como tantos outros margeiam indistintamente a rodovia, na qual eu me encontro, a espera de um ônibus que parece recusar-se a vir. Não obstante, este poste se distinguiu de todos os demais, pelo seu aspecto sujo, desgastado e erodido. Coberto por cartazes rotos e descoloridos, por entre os quais, alguns vergalhões enferrujados transparecem, como as entranhas de um animal escarnado, reafirmando sua decrepitude, como se fosse o único a sofrer com as intempéries do tempo. Por um instante, o poste pareceu-me um espelho.
As minhas mãos, que até então jaziam tranquilas e indiferentes nos bolsos da calça, saltaram afoitamente para fora, inquietas. Agora, movendo-se agilmente, meus dedos imitam freneticamente os carros que passam rentes, rápidos e desrespeitosos. Tudo, prenúncio de lembranças que quero esquecer.
Tentando tomar as rédeas das coisas, vejo, primeiro, o céu recortado por montanhas e nuvens e imediatamente percebo que o azul claro que a manhã pintou não desbotou; depois o rio, estagnado, que sempre trouxera-me uma calma, uma esperança vazia, uma imobilidade tola, mas necessária. Nunca, até então, tinha detido-me a observá-lo por mais de alguns segundos, – diziam que se tratava de um rio morto, diziam que não existia – mesmo assim, insisti em examiná-lo, absorto, tentando parecer filosófico.

Uma onda acerta-me, luto, tento equilibrar-me, mas caio. Ela ri, um riso branco dentre tantos dentes amarelo nicotina, que aos poucos se transforma em um pequeno sorriso – sorriso de vitória, como se o mar estivesse ao seu lado, ao seu jugo. Tento, inutilmente, revidar, não as ondas, mas seu sorriso.

Não me lembro quando a conheci. Cabelos negros e lisos e brilhantes, rosto pequeno, olhos negros profundos, de uma vivacidade estranha, dúbia; corpo "romano", proporcionalmente pequeno, frágil e no entanto tão ágil e envolvente. Mas naquele dia, na praia, reconheci seu domínio, sua ascensão sobre mim. Havia uma força espelhada em seus olhos, um objetivo firmado em seus passos, suas atitudes, transformando acontecimentos em mensagens subentendidas.
Em um certo dia, estávamos em seu quarto, na cama, ao centro. A janela escancarada deixando o sol, daquela tarde quente e abafada, entrar. Num canto, o ventilador tímido, sentado em uma cadeira, brisa alguma gerava, parecia assustado perante tal cena. Havia um gosto parcialmente salgado na sua pele habitualmente doce, pois nossos corpos transpiravam excessivamente, encharcando o lençol outrora branco. A música alta, que vinha ao longe, não sei onde, não abafava os rangidos, metálicos e histéricos, da cama, que havíamos comprado no dia anterior, em uma loja de antiguidades. A cama era grande e robusta, aparentando ser bastante velha, e de imediato não me trouxe nenhuma confiança quanto à sua durabilidade, mas ela parecia enfeitiçada, nem sequer pude conceber quais e quantas fantasias passavam pela a sua cabeça. E quando minhas incertezas iam se dissipando – não que elas estivessem se tornando certezas – subjugadas pelo torpor crescente que sempre me dominava naqueles momentos, crac, a cama cedeu, e definitivamente perdi o horizonte. De imediato, ela já estava sobre mim. Seus olhos, em fogo, não mais me viam, apenas possuíam-me como a si própria. Em meio aos seus risos, palavras desconexas, entrecortadas pela sua respiração ofegante, eram ditas.
Mas o silêncio veio, e já sentia em seus músculos o cansaço satisfeito, mas em sua mente ainda restava uma chama. E então, o que restava da cama ardeu. Só salvando-se o estrado, que colocado defronte a janela, recortava a luz do sol, que ainda, apesar do fim da tarde, invadia o quarto.
E tudo se configurou em esclarecimento, como em algumas gravuras de bíblias ilustradas, quando as nuvens, depois de desaguarem, furiosas, em uma tempestade, lutam desgastadas, para conter os raios de sol. E aqueles raios atingiram em cheio as minhas ideias, mas não havia salvação, nem arcanjos descendo o céu. Aquele estrado, aquela luz recortada, o meu cheiro perdido no seu suor, a sua vontade subjugando a minha, tudo aquilo era uma prisão de portas abertas, com uma carcereira de belas pernas, pequenos seios e vários temperos, em regime de semiescravidão, disfarçado de paixão, movido a sexo, que ela tão facilmente chamava de amor.
E como almejar a liberdade, se não havia mais a vontade, só restava a fuga por um túnel chamado esquecimento. E eu pensava, "entre a dor e o nada, sempre escolhemos a dor", mas a fuga representava o nada? Não havia escolha, eu disse que ia e não volveria, fechei a porta, e ela nada, impassível, imóvel, nada dizia.

O choque foi violento, metal retorcido, vidros quebrados, marcas de pneu no asfalto, aquele carro tão rápido que parece que veio do nada, em fuga. Em sangue voo, caio sobre o rio, que agora sei não existe, olho pela terceira vez, ao alto, e não vejo mais nada, os céus se misturaram com a terra, minhas lembranças finalmente se apagarão, e meu espírito voltou a se mover sobre as águas do rio.


nota do editor: o conto foi criado antes da reforma ortográfica e foi revisado para se adequar as novas regras.


2 comentários:

Daniel Ballester disse...

Pautas mínimamínimas para quien necesite traducir este gran cuento a la lengua cervantina.

Dúbia: Dudosa
Erodido: Erosionado
Vergalhões: Barras de refuerzo
Afoitamente: Vivamente
Rangidos: Rechinar
Torpor: (Sopor?)
Ofegante: Jadeante
Luz: Luz
Rio: Rio




Anônimo disse...

torpor
(ô) [Do lat. torpore.]
Substantivo masculino.
1.V. entorpecimento:
“Vejo, no canto, um sofá enorme. Deixo-me cair nele e só então sinto o torpor do cansaço da viagem” (Cornélio Pena, Fronteira, p. 7).
2.Indiferença ou inércia moral.
3.Med. Ausência de resposta a estímulos comuns.

Dicionário Aurélio