Fazia algum tempo que esperava, pacientemente, dentro
dos estreitos limites da minha paciência. Andando de um lado para outro, sempre
na mesma direção, – não em círculos, pois já bastam meus sonhos, que há dias
giram sempre em torno do mesmo tema – em um ritmo constante de passos largos e
fortes. A cada mudança de sentido, dando meia-volta, girava meu corpo apoiado
sobre um dos calcanhares. De repente, errei o passo e estaquei, fixo com um
poste ao meu lado, que como tantos outros margeiam indistintamente a rodovia,
na qual eu me encontro, a espera de um ônibus que parece recusar-se a vir. Não
obstante, este poste se distinguiu de todos os demais, pelo seu aspecto sujo,
desgastado e erodido. Coberto por cartazes rotos e descoloridos, por entre os
quais, alguns vergalhões enferrujados transparecem, como as entranhas de um
animal escarnado, reafirmando sua decrepitude, como se fosse o único a sofrer
com as intempéries do tempo. Por um instante, o poste pareceu-me um espelho.
As minhas mãos, que até então jaziam tranquilas e
indiferentes nos bolsos da calça, saltaram afoitamente para fora, inquietas.
Agora, movendo-se agilmente, meus dedos imitam freneticamente os carros que
passam rentes, rápidos e desrespeitosos. Tudo, prenúncio de lembranças que
quero esquecer.
Tentando tomar as rédeas das coisas, vejo, primeiro,
o céu recortado por montanhas e nuvens e imediatamente percebo que o azul claro
que a manhã pintou não desbotou; depois o rio, estagnado, que sempre
trouxera-me uma calma, uma esperança vazia, uma imobilidade tola, mas
necessária. Nunca, até então, tinha detido-me a observá-lo por mais de alguns
segundos, – diziam que se tratava de um rio morto, diziam que não existia –
mesmo assim, insisti em examiná-lo, absorto, tentando parecer filosófico.
Uma onda acerta-me, luto, tento equilibrar-me, mas
caio. Ela ri, um riso branco dentre tantos dentes amarelo nicotina, que aos
poucos se transforma em um pequeno sorriso – sorriso de vitória, como se o mar
estivesse ao seu lado, ao seu jugo. Tento, inutilmente, revidar, não as ondas,
mas seu sorriso.
Não me lembro quando a conheci. Cabelos negros e
lisos e brilhantes, rosto pequeno, olhos negros profundos, de uma vivacidade
estranha, dúbia; corpo "romano", proporcionalmente pequeno, frágil e
no entanto tão ágil e envolvente. Mas naquele dia, na praia, reconheci seu
domínio, sua ascensão sobre mim. Havia uma força espelhada em seus olhos, um
objetivo firmado em seus passos, suas atitudes, transformando acontecimentos em
mensagens subentendidas.
Em um certo dia, estávamos em seu quarto, na cama, ao
centro. A janela escancarada deixando o sol, daquela tarde quente e abafada,
entrar. Num canto, o ventilador tímido, sentado em uma cadeira, brisa alguma
gerava, parecia assustado perante tal cena. Havia um gosto parcialmente salgado
na sua pele habitualmente doce, pois nossos corpos transpiravam excessivamente,
encharcando o lençol outrora branco. A música alta, que vinha ao longe, não sei
onde, não abafava os rangidos, metálicos e histéricos, da cama, que havíamos
comprado no dia anterior, em uma loja de antiguidades. A cama era grande e
robusta, aparentando ser bastante velha, e de imediato não me trouxe nenhuma
confiança quanto à sua durabilidade, mas ela parecia enfeitiçada, nem sequer
pude conceber quais e quantas fantasias passavam pela a sua cabeça. E quando
minhas incertezas iam se dissipando – não que elas estivessem se tornando
certezas – subjugadas pelo torpor crescente que sempre me dominava naqueles
momentos, crac, a cama cedeu, e definitivamente perdi o horizonte. De imediato,
ela já estava sobre mim. Seus olhos, em fogo, não mais me viam, apenas
possuíam-me como a si própria. Em meio aos seus risos, palavras desconexas,
entrecortadas pela sua respiração ofegante, eram ditas.
Mas o silêncio veio, e já sentia em seus músculos o
cansaço satisfeito, mas em sua mente ainda restava uma chama. E então, o que
restava da cama ardeu. Só salvando-se o estrado, que colocado defronte a
janela, recortava a luz do sol, que ainda, apesar do fim da tarde, invadia o
quarto.
E tudo se configurou em esclarecimento, como em
algumas gravuras de bíblias ilustradas, quando as nuvens, depois de desaguarem,
furiosas, em uma tempestade, lutam desgastadas, para conter os raios de sol. E
aqueles raios atingiram em cheio as minhas ideias, mas não havia salvação, nem
arcanjos descendo o céu. Aquele estrado, aquela luz recortada, o meu cheiro
perdido no seu suor, a sua vontade subjugando a minha, tudo aquilo era uma
prisão de portas abertas, com uma carcereira de belas pernas, pequenos seios e
vários temperos, em regime de semiescravidão, disfarçado de paixão, movido a
sexo, que ela tão facilmente chamava de amor.
E como almejar a liberdade, se não havia mais a
vontade, só restava a fuga por um túnel chamado esquecimento. E eu pensava,
"entre a dor e o nada, sempre escolhemos a dor", mas a fuga
representava o nada? Não havia escolha, eu disse que ia e não volveria, fechei
a porta, e ela nada, impassível, imóvel, nada dizia.
O choque foi violento, metal retorcido, vidros
quebrados, marcas de pneu no asfalto, aquele carro tão rápido que parece que
veio do nada, em fuga. Em sangue voo, caio sobre o rio, que agora sei não
existe, olho pela terceira vez, ao alto, e não vejo mais nada, os céus se
misturaram com a terra, minhas lembranças finalmente se apagarão, e meu
espírito voltou a se mover sobre as águas do rio.
2 comentários:
Pautas mínimamínimas para quien necesite traducir este gran cuento a la lengua cervantina.
Dúbia: Dudosa
Erodido: Erosionado
Vergalhões: Barras de refuerzo
Afoitamente: Vivamente
Rangidos: Rechinar
Torpor: (Sopor?)
Ofegante: Jadeante
Luz: Luz
Rio: Rio
torpor
(ô) [Do lat. torpore.]
Substantivo masculino.
1.V. entorpecimento:
“Vejo, no canto, um sofá enorme. Deixo-me cair nele e só então sinto o torpor do cansaço da viagem” (Cornélio Pena, Fronteira, p. 7).
2.Indiferença ou inércia moral.
3.Med. Ausência de resposta a estímulos comuns.
Dicionário Aurélio
Postar um comentário