sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Lampejos


por Jayro Schmidt


le violon d'ingres-Man Ray

Durante a primeira grande guerra, refugiados e pacifistas foram para um país neutro, Suíça, e lá descobriram que pensavam no mesmo de maneiras diferentes. Queriam começar tudo outra vez, do nada da arte.
O palco foi o Cabaré Voltaire, em Zurique, um astro com atmosfera cosmopolita que reuniu artistas intempestivos, mas bem humorados e que resolveram dar nome ao que faziam, que em qualquer livro de história é visto como niilismo, anarquismo e coisas do gênero.
Como eles eram isso tudo e mais, menos genéricos, abriram um dicionário ao acaso e um dedo foi parar em dada, nome de acordo com as suas expectativas artísticas, ou deveria dizer explosivas?
Explosivas sim de sins através de soluções imaginárias como na patafísica de Jarry e outros precursores solitários.
Desculpem a redundância, pois todo precursor é solitário, e o ato de bibliomancia que eles perpetraram levou-os ao nome de começos porque dada é um solecismo, exprime a afeição da criança e nomeia o paninho, o cavalinho de pau, a coisa que joga do berço para descobrir a gravidade do mundo.
É claro que as crianças são repreendidas e às vezes punidas e assim ficam mudas ou gritam, reagem com lágrima e cocô em excesso e tudo acaba virando uma merda familiar.
Dizia que o nome dada foi um ato de bibliomancia, que consiste em se abrir um livro e interpretar a sorte no trecho em que a vista pousou. Os dadaístas, entretanto, não foram místicos apesar de curtirem essa forma semiótica de adivinhação. Curtiram todas as semióticas, que desbancaram as estéticas.

Clarice Lispector

Acho que não sou místico, mas tenho a mania de abrir livros na página que for e consultar, em especial livros de etimologia. Nesse caso, é uma coisa: cada coisa é uma palavra, como pensava Clarice Lispector.
Cada palavra tem as suas coisas e assim fico horas e horas ouvindo o farfalhar das páginas e o roçar do lápis no papel.
A sensação que tenho é que as palavras vão para longe, adquirem sentidos e voltam sempre.
Voltam porque são como gatos desde que a carícia não seja a contrapelo. Isso aprendi lendo nas palavras para onde querem me levar.
Quanto mais me levam para trás, mais me arremessam para frente.

ideograma chines-Mar

Nas bibliomancias etimológicas, logo descobri que as palavras se apresentam conforme certas disposições mentais e acabam formando famílias de significados.
Quando se fala em etimologia, o lampejo das palavras está no étimo, que é o vocábulo que forma outro vocábulo. Como se a origem dos termos dependesse do insuflar, do sopro, do sibilar que de uma maneira ou de outra pediram traços de sinais-icônicos-simbólicos que nas palavras orientais não se afastaram completamente do figural e, nas ocidentais, abstraiu. Mesmo assim, ainda se pode, nas vogais e nas consoantes latinas, configurar seus inícios, que foram ações cognitivas ditas e desenhadas.
E como vocábulos formam vocábulos, cada sentido verbal pede outro sentido e assim amplia-se o campo semântico, a praia dos escritores a ponto de fazerem dos semas a possibilidade de expressar o que ainda não tem nome – a língua no interior da língua. Joyce é claro, mas antes dele Marinetti e Carroll.
Fico com Carroll, que colocou na boca de Humpty Dumpty a definição da palavra que agarra outra palavra, a “braquilógica”, pois Alice queria saber porque os signos não se fixam, tendem a migrar no poema que memorizou, “Jabberwocky”, como em outras, “sacalaxurgos”, “elasticojentos”, “miserágeis”, “esfregachugos”, “porcalhos”.
A palavra braquilógica é uma “maleta”, na qual Alice poderia guardar coisas pessoais, tudo ao mesmo tempo: “Há dois significados empacotados em uma palavra só”. A palavra-valise como ficou mais conhecida.
Dando uma garimpada etimológica no termo de Carroll, braqui vem do grego brachion, braço, que nos caranguejos, braquiúros, acabam em garras. E os caranguejos, como se sabe não somente através de Gaston Bachelard, preferem não perder a presa, e sim a garra porque se regenera. É que esse velhinho pensador sempre novo observou que os caranguejos não comem para viver, vivem para comer.

Gaston Bachelard



3 comentários:

Anônimo disse...

A palavra mata a fome. Mais tudo mundo prefere fechar a boca com x burger.

Cynthia Lopes disse...

Gostei muito das breves luzes lançadas sobre variados temas, principalmente, sobre "dada", movimento e significado,
no tempo e espaço daquele momento.
Bom demais...

Jayro Schmidt disse...

Cynthia: lampejo é isso, almenara também, luz à distância como dos olhos de teu gato.