segunda-feira, 10 de junho de 2013

A SORTE DE UM INSTANTE

Por Jayro Schmidt


Água-forte de Marcelo Grassmann, detalhe


Alguns anos atrás fui surpreendido por uma mulher que não conhecia, que ao telefone me disse sobre uma pintura que adquiriu e que a imagem estava desaparecendo.
Nunca havia passado por isso, e, por expectativa acerca do que aconteceu, perguntei a ela se a pintura esteve exposta a algum acidente, dizendo-me que a mesma ficou no apartamento do qual esteve ausente por cinco anos.
Logo entendi o que poderia ter acontecido e pedi a ela que trouxesse o quadro para verificá-lo tecnicamente.
De fato, a imagem havia perdido a força, velada pelo tempo com a falta de luz. Expliquei a ela estes detalhes e me comprometi em resolver a situação porque logo observei que a tela estava intacta, sem a ação de umidade, e que seria fácil resgatar a imagem.
Uma amiga restauradora fez a limpeza paciente e foi bonito ver outra vez o brilho da tinta a óleo e o que estava ali, e ainda está, a relação de dois mundos que são aparentemente antagônicos.
Acredito que tenha sido isso – a conciliação do aquém e do além na pintura – que fez a mulher adquiri-la e querer tê-la reanimada. Isso confirmei ao vê-la, jovem ainda, mas com uma velatura sobre o rosto que ao mesmo tempo lhe dava uma expressão de criança e de anciã.
Depois de alguns dias, ao chegar ao trabalho, um grande envelope feito à mão me aguardava e com um recado de agradecimento que, sem dúvida, a mulher escreveu no ato por não ter me encontrado.
Ao ver o que continha, fui arrebatado por uma imagem de um gravador que já conhecia, Marcelo Grassmann, e mais arrebatado ainda quando vi, na cabeça com o elmo da gravura, um caranguejo que gravou a traço – o meu signo.
Agradeci por telefone o presente tão nobre e nunca mais tive a oportunidade de revê-la. A gravura posso vê-la o tempo todo, e mesmo não a tendo no campo de visão, continuo com sua imagem como se fosse um talismã.
De fato um talismã como é toda a obra de Grassmann, de velaturas na técnica e, sobretudo, nas imagens em si, anímicas, e que chegam até nós através de um fundo invisível, do outro do mundo como diria Blanchot, imagens que nos velam como velam os animais que também estão em sua obra.
Não são imagens do outro mundo, mas do nosso, do outro nosso mundo subliminar esquecido. A obra gravada e desenhada de Grassmann tem o dom de dizer o que os mestres podem dizer: não há nada superior ao silêncio.
Durante esses comentários ao sabor da memória, me perguntei se a mulher não adquiriu a gravura de Grassmann pelo mesmo motivo que adquiriu a minha pintura que, comparada com a sua gravura, é apenas o pálido reflexo do que vou dizer: apesar de tão diferentes quanto às imagens, no entanto têm algo em comum na sondagem de um lugar onde habitam os guias, os indícios e os sinais.
Assim vejo a obra de Grassmann e assim quis transmitir a ele a sorte de um instante.


2 comentários:

Lia Krucken disse...

Jayro, que lindo texto.
A sorte de um instante se tornou eterna e chega até nós, que te lemos, também.

Jayro Schmidt disse...

Oi, Lia: que lê, isso sei desde épocas não tão remotas assim, nos tempos da pintura na sorte do instante e de outros, quando vens à ILha e me deixas - sempre - um livro.