Ler e escrever são atos solitários e fazem da solidão
o lugar do existente, da plenitude da vida, o que significa pensar sobre a
mortalidade.
Dos livros disponíveis na infância e na adolescência,
poucos mereciam ser abertos. E como o tempo se encarrega de fazer com que se
abra o livro da vida, o viver me ensinou a encontrar certos livros, na época
reprovados e censurados, que passavam de mão em mão, livros considerados
“sujos” como ouvi de alguém ao ter adquirido, entre outros, um exemplar de
Rimbaud.
O livro de Rimbaud “caiu” em minhas mãos após uma
longa viagem com Letícia, na qual atravessamos o extenso encantamento argentino
de carona em carona. Desde o colégio estávamos sempre muito próximos e, durante
os dias em Buenos Aires, seus olhos de ouro reafirmaram o quanto foi ma souer.
Conviver com ela era como estar em um filme sendo
feito com outros filmes. O cinema era o que mais nos atraía, além da fotografia
e da pintura.
Apesar da força inventiva de Letícia com as cores, ela
não deu continuidade à pintura, sendo, em parte, frustrada pelas
circunstâncias. É nítida ainda a sua imagem pintando, realçada pelo corpo ágil
e feliz, como se viesse de países longínquos, enviesada diante do cavalete, pois
pintava com a mão esquerda.
Letícia foi a primeira pessoa que conheci na liberdade
de ser em contraste com os anos de repressão, tortura e extermínio. Ler,
durante o infame regime militar, sinalizava uma ameaça. E sabíamos, na pele,
que a censura estava em toda parte, estabelecida com armas para calar os mais
impetuosos, os que ousavam transformar o lido em discurso, cena e som. Eu mesmo
fui preso durante uma das feiras do livro e ao retornar para casa com um
prospecto do lançamento dos livros de Henry Miller! É óbvio que os agentes não
sabiam quem era esse autor, nem tampouco os demais, mas isso não quer dizer que
parassem de farejar. E tive que ficar durante várias horas tentando explicar o
que em vão se explica a ratos. Depois de quatro dias fui solto, dias que passei
lendo as paredes da cela, evitando a cara de cagalhão do carcereiro,
conversando com as baratas e vendo sangue e leite misturados.
Essa imagem drummondiana é emblemática daquela época,
muito mais o ícone que circulou clandestinamente, a foto do adolescente baleado
pelas costas por ter pisado na grama, em Brasília, antecipação do ícone máximo,
Herzog enforcado na prisão.
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