terça-feira, 28 de agosto de 2012

Elegias de Duino (a primeira)

Rainer Maria Rilke



Litografia de Jayro Schmidt
Litografia de Jayro Schmidt - 1981


Elegias de Duino, a primeira


Quem, se eu clamasse, me ouviria desde a legião
dos anjos? e supondo ainda que um me tomasse
de repente o coração: eu desfaleceria ante sua
mais severa existência. Porque o belo nada é
senão o começo do terrível, que ainda suportamos,
e o admiramos tanto porque ele placidamente desdenha
para nos destruir. Todo anjo é terrível.
E assim sufoco a sedução
do sombrio lamento. Oh, com que podemos
contar na necessidade? Não com anjos, nem com homens,
e os audazes animais já estão cientes
de que não somos muito confiáveis em nossa morada
no mundo interpretado. Nos resta talvez
uma árvore qualquer na colina que a cada dia
revemos; nos resta o caminho do ontem que passou
e a minha lealdade a um costume
que nos cativou, que assim permaneceu e não se foi.
Oh, e a noite, a noite... se o vento cheio de espaço cósmico
nos exaurisse a face –, de quem ela não permanecesse a desejada,
docilmente frustrante, que por cada um dos corações
penosamente espera. É ela mais gentil para com os amantes?
Ah, eles apenas se ocultam um do outro em seu destino.
Ainda não sabes disso? Arremessai dos braços o vazio
rumo aos espaços que respiramos; talvez assim os pássaros
sintam o expandido ar com mais intensa revoada.

Sim, as primaveras precisam muito de ti. Muitas estrelas
se apresentavam a ti para que as percebesses. Se levantava
em aproximação uma onda vinda do passado, ou
pela janela aberta por onde passastes,
um violino se rendia. Tudo isso era missão.
Mas conseguias lidar com isso? Não estavas sempre
alheio na expectativa, como se tudo
te anunciasse um ser amado? (Onde o queres acolher,
em ti onde os vastos pensamentos estranhos
vêm e vão e com frequência à noite permanecem).
Mas isso anseias, assim cantam os amantes; longevo,
ainda que não suficientemente imortal, é seu célebre sentimento.
Aqueles, quase invejais, os desprezados que
achavas tão mais amorosos que os bem cuidados. Começa
sempre de novo o louvor nunca atingido;
pense: o heroi se mantém, até a queda foi para ele
apenas pretexto para ser: seu último nascimento.
Mas os amantes tomam para si a natureza
exausta, como se para tanto não se lhes exigisse
energia redobrada. Pensastes o suficiente em Gaspara Stampa, 
uma simples jovem
de quem o amante se distanciou, no teor mais elevado
deste sentimento amoroso, que eu seria como ela?
Não poderiam enfim estas antiquíssimas dores
serem mais frutíferas? Já não é tempo de nós amorosamente
nos libertarmos do amado e tremendo persistirmos
como o arco que mantém a flecha, para que no impulso
seja mais que ela própria. Pois permanecer é lugar nenhum.

Vozes, vozes. Ouvi, coração meu, da maneira como só
os santos ouviram: como o supremo chamado
os levantou do chão; mas eles,
os impossíveis, se mantiveram ajoelhados e absortos:
assim escutavam. Não que suportastes
facilmente a voz divina, certamente. Mas ouvi o que sopra no ar,
a mensagem ininterrupta que se forma do silêncio.
Sobre ti vem agora o murmúrio daqueles que morreram jovens.
Onde sempre adentrastes, nas igrejas de Roma e Nápoles,
o destino deles nada te disse, silenciosamente?
Ou uma inscrição se postou diante de ti
como a recente tábua em Santa Maria Formosa.
Que querem de mim? Em silêncio eu deveria
desconsiderar o semblante da injustiça, que por vezes
obstrui o puro movimento de suas almas.
É de certo estranho não se habitar mais a terra,
não se praticar mais as convenções recém aprendidas,
rosas e em especial outras coisas alvissareiras
não darem o significado do futuro dos homens;
o que se era nas inacabáveis mãos amedrontadas
não ser mais, e até mesmo esquecer
os próprios nomes como se fossem um brinquedo despedaçado.
É tão estranho não mais desejar os desejos. É estranho
ver tudo o que se relacionara
vagar tão a esmo nos espaços. E o estar morto é tão penoso
e cheio de recuperações que o homem gradualmente
passa a sentir um pouco de eternidade. – Mas todos os viventes
se enganam ao se diferenciarem tanto.
(Diz-se que) os anjos normalmente não saberiam
se vagavam por entre vivos ou mortos. O fluxo eterno
arrasta sempre consigo todas as idades através de ambos os domínios
e se sobrepõe aos mesmos.

Afinal, não precisam mais de nós os que partiram mais cedo,
em silêncio se libertando das coisas deste mundo, como
se deixa o acalanto do seio materno. Mas nós, que de tão grandes
mistérios necessitamos, dos quais por tristeza emana com tanta frequência
o glorioso avanço, conseguiríamos existir sem eles?
É sem valor a lenda de que outrora no lamento
da ousada primeira música de Lino perpassou árida rigidez;
aquela em que só em recinto assustado, onde um jovem quase divino
se foi para sempre de maneira repentina, o vazio entrou
naquela vibração, a que agora nos arrebata, nos conforta e nos ajuda.



Tradução de Luiz Carlos Mesquita e Jayro Schmidt


Nenhum comentário: