terça-feira, 28 de agosto de 2012

Elegias de Duino (a oitava)

Rainer Maria Rilke


Foto de Zé Fagundes
 foto de Zé Fagundes


Elegias de Duino, a oitava

Dedicada a Rudolf Kassner

Com todos os seus olhos a criatura vê
o Aberto. Só nossos olhos estão
invertidos e em torno de si
como armadilhas que cercam sua livre passagem.
Sobre o que está fora, sabemos apenas pela
face do animal; porque cedo enganamos
a tenra criança e a forçamos
a perceber o contrário do que se configura, não o Aberto,
que é tão profundo na face do animal. Livre da morte.
Só nós a vemos; o animal livre
tem sempre seu final atrás de si
e Deus adiante e, se possível, assim prossegue
em eternidade como prosseguem as fontes.

Nós nunca temos, um dia que seja,
diante de nós o puro espaço onde as flores
perenes desabrocham. É sempre mundo
e nunca o vazio sem negação: a pureza,
insondável, que se respira,
eternamente se sabe e não se anseia. Como a criança,
no silêncio alguém se perde nisso e é
estremecido. Ou um outro morre e o é.
Porque na proximidade da morte não a vemos,
e se olha para fora, talvez com o grande olhar do animal.
Amantes, se não fosse o Outro que
encobrisse a visão, estão perto e se espantam...
Como que por engano se lhes abre
por trás do Outro... Mas sobre ele
ninguém passa, e para ele de novo será mundo.
Orientados sempre para a criação,
nela vemos apenas o reflexo do que é livre,
diante de nós obscurecido. Ou como um animal,
calado, olha sereno através de nós.
Isso se chama destino: estar do outro lado,
e nada mais que isso, e sempre do outro lado.

Se houvesse consciência de nossa espécie
no animal firme, que se opõe a nós
em outra direção, seríamos vencidos
com sua transformação. Mas seu ser é para ele
infinito, intangível e sem o olhar
que se detenha em sua condição, puro, como sua visão.
E onde vemos futuro, de lá ele tudo vê,
e a si mesmo em tudo, e é salvo para sempre.

E eis que na chama vigilante do animal está
o peso e a preocupação de uma grande melancolia.
Pois nele também pesa o que
com frequência nos aturde – a lembrança
do que isso já fora uma vez, o que se anseia
como o mais perto e mais fiel no seu abraço
infinitamente terno. Aqui tudo é distância,
lá era sopro. Após a primeira morada
a segunda lhe parece ambígua e tempestuosa.

Ah, a felicidade da pequena criatura
que permanece para sempre no ventre que a trouxe à luz;
que sorte a deste mosquito que dentro ainda saltita
por ocasião de suas núpcias: pois ventre é tudo.
E veja a meia segurança do pássaro
que de sua origem quase conhece a ambas,
como se fora a alma etrusca pura
de um morto que se acomodou numa cova
que tem por cobertura sua imagem jacente.
E quão perturbado fica aquele que precisa voar
tendo nascido de um ventre. Como que assustado
diante de si mesmo, relampeja pelo ar como a rachadura
que atravessa uma xícara. Assim rasga o rumo
do morcego na porcelana do anoitecer.

E nós, espectadores, sempre, em todos os lugares,
com os olhos em tudo e nunca para fora!
Isso nos fatiga. Isso ordenamos, mas se decompõe.
Outra vez ordenamos e nós mesmos decompomos.

Quem nos inverteu de modo que nós,
seja no que for que façamos, tenhamos a atitude
de alguém que está partindo? Como quem do alto
da última colina, de onde todo o seu vale
pode ser visto mais uma vez, se volta, para e permanece –,
assim vivemos em perpétua despedida.



Tradução de Luiz Carlos Mesquita e Jayro Schmidt



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