domingo, 16 de setembro de 2012

Elegias de Duino, Rainer M. Rilke (a quinta)


Rainer Maria Rilke



Os saltimbancos – Pablo Picasso
Os saltimbancos – Pablo Picasso*


Elegias de Duino, a quinta


dedicada a Sra. Hertha Koenig

Mas quem são eles, dizei-me, os saltimbancos, estes um pouco
mais efêmeros que nós mesmos, que com urgência, desde cedo
são acossados por um alguém
na insaciável vontade de agradar? Todavia ela os pressiona,
os arremessa e os captura de volta para si; como que do ar untado
e mais constante, eles descem
de seu eterno salto ao consumido
e mais fino tapete, esse tapete
extraviado no universo.
Estendido como uma atadura, como se os recantos
dos céus tivessem à terra aí lhe infligido dores.
E apenas aí,
eretos, neste local e desabrigado: a grande
letra capitular do ali se postar..., e logo também, os homens mais fortes
novamente giram e se voltam para um gracejo, o sempre
recorrente agarrar, como Augusto o Forte à mesa
com um prato de estanho.

Ah, e em torno deste
centro, a rosa do contemplar:
floresce e se desnuda. Em torno deste
pilão, o pistilo,
tocado pelo próprio desenvolto pólen para o simulado fruto,
mesmo sem vontade fecundado,
nunca em si – radiante com delicada
aparência, um leve desânimo fingindo um sorriso.

Ali: o surrado, enrugado levantador de peso,
o ancião a quem só lhe resta agora tocar o tambor,
encolhido em sua formidável pele, como se esta outrora
retesse dois homens, um
que agora jaz no cemitério da igreja e ele que ao outro sobrevivera,
alheio e por vezes levemente
confuso, no interior da enlutada pele.

Mas o jovem, o varão, como se fosse ele o filho de uma nuca
e uma freira: cheio e firme, preenchido
com músculos e ingenuidade.

Oh, vós,
que fostes uma dor ainda pequena,
outrora recebida como brinquedo, em uma de suas
longas convalescenças...

Tu, que com o impacto,
como só os frutos sabem, imaturos,
que caem todos os dias centenas de vezes da árvore,
do movimento de seu todo formado (que, mais rápida que a água,
tem em pouco tempo a primavera, o verão e o outono) –
bates de encontro à sepultura:
de vez em quando, em meia pausa, uma amorosa
face quer surgir no alto inclinada à tua raramente
carinhosa mãe; mas em teu corpo,
que abrangente se consome, ela se perde,
aquele quase esmiuçado rosto... e outra vez
o homem bate as mãos para o salto, e antes que te
cause um certo aperto nas imediações do sempre
pulsante coração, lhe vem o flamejante calor da sola dos pés,
sua origem, antes com algumas lágrimas pesadas,
logo forçadas nos olhos.
E mesmo assim, às cegas,
o sorriso...

Anjo! Oh, pega-a, arranca-a, a erva curativa de pequena flor.
Molde um vaso, guarde-a! Coloque-a sob aquelas alegrias ainda não
abertas para nós; em suave urna
exalte-a com floral e sinuosa inscrição: Subrisio Saltat.

Então tu, graciosa,
tu, pelos mais encantadores prazeres
foste silenciosamente relegada. Talvez sejam
tuas franjas para ti afortunadas –
ou sobre os fartos seios juvenis
a verde fibra de seda metálica
se sinta eternamente mimada e de nada careça.
Tu, fruta do mercado da serenidade, posta sempre de outra maneira
sobre todas as balanças, publicamente tremulando equilibrada
sob os ombros.

Onde, oh onde está o lugar – eu carrego no coração –
onde eles há tempo o gozo não conseguiram, nem um do outro
se soltar, como animais incompatíveis
sendo um pelo outro coberto;
onde os pesos são ainda opressivos;
onde ainda sobre seus inúteis
bastões giratórios os pratos
vacilam...

E de repente, nesse desgastante Lugar Nenhum, de repente
o indizível local onde o puro exíguo
inconcebível transforma-se – salta em torno
daquele vazio excesso.
Onde a conta de muitos sinais
se resolve sem números.

Praças, oh a praça em Paris, eterna ribalta,
onde a modista, Madame Lamort,
os inquietos caminhos da terra, infindos fios,
enrola e enrosca e deles
inventa laços, adereços, flores, penachos, frutos artificiais – tudo
em espúria coloração – para os baratos
chapéis de inverno do destino.

Anjos!: seria um lugar que não conhecemos, e lá então,
sobre indizível tapete, mostram aos amantes, estes que
nunca conseguem chegar ao gozo, suas audazes
e altivas figuras do impulso do coração,
suas torres feitas de desejo, suas
escadas apenas curvadas uma à outra, trêmulas,
onde durante muito tempo o chão jamais esteve – e conseguem
diante da plateia em volta, os inumeráveis silenciosos mortos:
lançam eles então suas derradeiras, sempre redimidas,
sempre latentes, por nós desconhecidas, eternas,
legítimas moedas do enlevo, diante do finalmente
e verdadeiramente risonho casal,
sobre o saciado tapete?



Tradução de Luiz Carlos Mesquita e Jayro Schmidt


* Na temporada em Paris, Rainer Maria Rilke teve a oportunidade de ver “Os saltimbancos”, pintura de Picasso que inspirou a quinta elegia.




2 comentários:

Daniel Ballester disse...

Anjo! erva curativa de pequena flor!

Jayro Schmidt disse...

o semelhante cura o semelhante e os animais por conta própria.