Foto de Danisio Silva
Lembro que o primeiro poema que conheci de Elizabeth
Bishop, publicado num suplemento literário de jornal, dizia que a arte de
perder não é difícil de aprender. Lose
something every day (perca algo a cada dia), aconselhava ela, num dado
verso do poema. Na ocasião recortei do jornal aquele poema para conservá-lo
entre os meus guardados, não somente porque havia ali uma realizada poesia, mas
também porque ele confirmava uma coisa que, de certo modo, eu já conhecia desde
garoto. Por isso não me preocupa agora o fato de algum tempo mais tarde haver
perdido aquele recorte.
Aos onze ou doze anos de idade, em Florianópolis, a
rua Conselheiro Mafra era para mim um caminho habitual e diário. Estou falando,
é claro, dos anos 44 e 45. Eu saía da Bento Gonçalves, conhecida também por
Beco do Segredo, usando calças curtas e na maioria das vezes de pé no chão, e
circulava pela redondeza, Felipe Schmidt, Conselheiro Mafra, o caminho para o
Mercado, o caminho para os trapiches e praias da Baía Sul. Como se dizia então,
eu ia às ruas para “vadiar”, o que mais ou menos ainda faço até hoje. De todos
esses caminhos, a Conselheiro Mafra era inevitável: ali ficavam o armazém, a
padaria, as portazinhas que vendiam frutas e legumes, dos quais todos da rua
(com exceção de alguns ricos, pois esses são animais diferentes) éramos
“fregueses de caderno”. Aquele era um desses tempos que, para nós, o mundo não
passa de uma caixa mágica a transbordar espantos.
Entre os fortes espantos da época, recordo de D.
Carlota. Era uma senhora de idade, cabelos embranquecidos, gorda, de olhos
verdes, que ficava dias inteiros debruçada à janela de sua casa – uma das
casinhas geminadas de porta e janela que ainda hoje se vê na Conselheiro Mafra
– a espiar a rua. O que me surpreendia não era o fato de ela permanecer tanto
tempo à janela a olhar aquela rua pobre de novidades e movimentos. O que me
surpreendia era que ao passar pela calçada diante dela, nascia em mim a
estranha impressão de que D. Carlota não estava vendo nada. Os seus olhos
verdes pareciam perpassar pelas coisas sem ver, embora ela não fosse cega. Era
como se desgostassem, ou varressem, as imagens do mundinho pequeno à frente
deles, para visualizarem algo mais íntimo, mais essencial, que só ela, D.
Carlota, conseguiria admirar. Então compreendi, ou imaginei então, que D.
Carlota ficava tanto tempo à janela exatamente por isso, para varrer coisas que
não mais lhe interessavam. Aquela era uma “janela de varrer”.
Fica subentendido que, a partir daí, eu próprio fui
criando as minhas janelas de varrer. A ideia me pareceu fantástica e exequível,
duas qualidades raras na maioria das ideias. Comecei varrendo o medo pelas
notas baixas no colégio, varrendo a importância mesma do colégio. Em seguida,
varri o desprezo por mim das garotas que eu curtia. Varri vários dias de
tristeza ou tédio. Mais tarde varri as doutrinas religiosas e os preconceitos
de qualquer espécie, raciais, ideológicos, sexuais. Varri o respeito pelos políticos.
Hoje, na medida em que o mundo ou a mídia me saturam a alma ou me corrompem o
espírito, eu vou varrendo e varrendo. Certa ocasião, confesso, pensei em varrer
Deus; mas daí me dei conta que ninguém sabe quem é Deus, que o máximo que se
pode dizer dele ou Dele foi dito pelo místico Bayazid de Bistun e isso, pasmem,
à maneira de Guimarães Rosa: “Fui de Deus em Deus, até que eles gritaram de mim
em mim: ó tu eu!” É impossível varrer isso.
O poema de Elizabeth Bishop, a que me referi no início
desta arenga, valeu pela força da poesia, mas se ela foi perita na arte de
perder, eu me tornei perito na técnica de varrer, e ambos estamos com a
verdade. Se alguém acaso não concordar com as nossas verdades (elas são tão
diversas e contraditórias), que as percam ou varram.
Extraído,
com a autorização do autor, de Janela de
varrer, Bernúncia Editora, 2006.
Um comentário:
Cuando sea fantasma y mucho antes todavía, cuando la sedimentación de mi espíritu lo permita, volveré a internarme no vento sul cuando invade a rua Conselheiro Mafra.
Destino sin destino, silenciosa madrugada sem cachoeiras ni açorianos, en pleno día, Jayro encontra o pasarinho perdido na Conselheiro Mafra.
Isso é democracía das sombras. A única que vela por nosotros.
Que belo texto Silveira.
Deu vontade de aprender a escribir.
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