quarta-feira, 31 de outubro de 2012

O caga-lume cego

Por Silveira de Souza



                Senhor dos Passos*


Do alto, bem do alto, podia ver, no sonho, uma extensão de mar na Baía Sul e algumas coisas já desaparecidas, o Miramar, o edifício do Hotel Laporta, quatro trapiches paralelos que, lá do alto, entravam pelo mar e pareciam distanciados um dos outros por, no mínimo, 200 metros. O rosto gordo e trigueiro ao meu lado dizia: “Antes havia o Hotel Laporta, depois construíram a Caixa Econômica no mesmo lugar. Hoje o que existe ali é o néris de pitibiriba”. “Como é que é?”, gritei. “É isso, sou incapaz de saber o que existe ali hoje. É o néris de pitibiriba!” O rosto gordo e trigueiro riu e mostrou um dente de ouro brilhante entre dentes cor de marfim amarelado. O mais estranho é que eu já ouvira uma variante dessa expressão há muitos anos atrás, quando garoto. O vendedor de manuel-da-Bahia, um doce feito de farinha de milho, estava na varanda de nossa casa conversando com minha mãe. Era nos anos quarenta do século passado. Ele trazia um balaio raso com os doces, tinha um rosto longo, faminto, melancólico e costumava dizer: “Eu não tenho nada, senhora! Nada! Necas de pitibiriba!”
Mas daí vimos, no sonho, lá no alto, que a Praça Quinze começava a ficar apinhada de gente e era noite por toda parte. As luzes dos postes estavam acesas, havia o ruído do Carnaval, a zoeira de metais e tambores e aquele halo fosforescente que subia para os céus. Irrequietos, eu e Vanda corríamos atrás da primeira escola de samba de Florianópolis, que entrava na Praça Quinze, saída da Felipe Schmidt. Fazíamos parte de uma multidão que acompanhava a escola. Conseguimos ficar defronte ao Palácio do Governo, mas do outro lado da rua, na calçada que margeava o Jardim Oliveira Belo. A primeira escola de samba de Florianópolis passou diante do palácio todo iluminado, com as janelas abertas, tendo pessoas muito distintas, homens e mulheres, em pé e sentados em cadeiras elegantes distribuídas nas sacadas. E vimos também o Interventor do Estado, que estava lá em cima, em pé, olhando o Carnaval, o rosto marcado por uma expressão de estudada e digna seriedade. Depois saímos dali, espremidos pelo povo, corremos através do jardim até o outro lado da Praça. E lá, do outro lado, ficamos a olhar novamente a mesma escola que, daquela perspectiva, parecia diferente.
À noite, naquela época, vinha sempre o medo. Deitado na cama, com as luzes apagadas, o garoto ainda acordado sob as cobertas, o medo acabava por entrar no quarto. O curioso era que não era um medo de monstros, ou do Demônio, mas um medo do Senhor dos Passos. A mãe um dia o levara ao Hospital de Caridade para visitar uma parenta adoentada. Eles subiram a pé a ladeira íngreme, além da qual se erguia um fantástico edifício pintado de amarelo ocre que parecia ter mil janelas. Depois da visita, a mãe o arrastou para uma capela onde se achava o Senhor dos Passos. Daí em diante nasceu o medo daquela figura macerada, envolta em capa roxa com debruns prateados, arcada sob uma enorme cruz, tendo aquela expressão de Divindade Agoniada. À noite ele vinha, e era o Senhor dos Passos porque os seus pés pareciam bater, em pesados passos, sobre o assoalho do quarto, pum! pum! pum!  Quando eu dizia isso para a Vanda, ela me chamava de cagão.
A propósito, Vanda é minha irmã e morreu antes de eu nascer. De quando em quando me encontro com ela, como daquela vez em que meu pai me deu a lanterna de presente. Foi a primeira lanterna elétrica que eu tive e fiquei um dia inteiro com ela acesa, iluminando melhor tudo o que via, a gaiola do gaturamo, as galinhas do quintal, as formigas do chão, até mesmo o chão liso, que ficava com um círculo mais claro. Que coisa incrível a luz!  Então, de repente, vi a Vanda e duas amigas que costuravam na sala, em torno de uma mesa sobre a qual estavam duas máquinas de costura e se espalhavam tecidos coloridos. Eu caminhava em círculos pela sala, iluminando, iluminando. Uma das amigas disse: “Puxa, ao ver esse garoto miúdo e sua lanterna, pensei que fosse um caga-lume!” Ela disse mesmo “caga-lume” e todas riram.
Achei aquilo lindo. Aqueles espíritos estavam certos e ninguém de carne e osso me havia dito coisa igual. Eu não passava de um caga-lume. Um caga-lume cego, assombrado com a luzinha de sua lanterna.



*imagem desfocada no aplicativo Adobe Photoshop Touch, versão para Ipad.


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